Lembro-me de, quando garoto, passar o Inverno a suspirar
pela Primavera.
Isto, quando os Invernos lembravam o Dilúvio e os ribeiros
da minha terra o rio Amazonas.
Ultimamente, porém, os Invernos têm ido tão secos, que até o
meu pátrio Regavão ficou reduzido a um fiozinho de nada. Qualquer dia
desaparece, murmurava eu para comigo, cheio de angústia.
Imaginem agora o meu alívio quando, com a entrada do mês de
Março e a lua de Fevereiro, pelas indicações do Seringador, o Inverno resolveu visitar-nos. Eu, ao princípio nem
acreditava. Mas, após quinze dias de chuva pegada, não resisti mais. Meti-me no
carro e só parei à vista do meu Regavão.
Aleluia! O rio da minha infância ressuscitou! Como ele vai
bonito! De monte a monte, undoso, rápido, refulgente, a saltar e a rir de
margem em margem, de cachoeira em cachoeira, de represa em represa. Passei o
resto da tarde a olhar para ele. Só a noite me interrompeu o êxtase.
Muito gosto eu da água. Não no sentido em que muitos gostam
do vinho, mas no sentido filosófico. Ficou-me este gosto das prelecções de
Mestre Saias, que floresceu em Peireses no século XX, mas dir-se-ia ter
florescido na Grécia antiga:
– Dos quatro elementos que compõem o universo, ar, terra,
fogo e água, é a água o mais importante, por ser a fonte da vida – afirmava ele
com a autoridade dum Sócrates de parrogueira.
Fonte da vida e de inspiração poética, acrescento eu, sem autoridade
nenhuma. Em todas as épocas houve poetas que pescaram metáforas amorosas na
água, com a fortuna com que outros pescam pérolas no mar. Qualquer fonte, rio,
lago ou nuvem lhes serve para falarem metaforicamente da coisa amada.
A mim, que não sou poeta, qualquer dia de chuva me traz à
memória a minha infância e a ternura da minha mãe.
Quando, aí pelos cinco ou seis anos, comecei a ir com as
vacas para o monte e a chegar a casa à noite todo molhado, minha mãe recebia-me
com palavras de muito carinho: «Anda cá, meu filho. Ai como tu vens! Ainda
apanhas alguma pneumonia. Deixa que eu te dispo e enxugo». E despia-me a roupa
molhada, e embrulhava-me num cobertor de flanela, e cobria a minha inocente
nudez de beijos.
Eu gostava daquilo.
E, partindo do princípio de que, quanto maior fosse a molha,
maior a ternura, antes de entrar em casa, metia-me debaixo duma das muitas
cataratas que, naqueles dias de Inverno, se precipitavam dos altos taludes.
Com que saudades eu recordo esses tempos…
Como o rio vai grande…
Como as fontes jorram água…
Com que abundância ela me escorre pelas faces…
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 86 e s.)
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