Ontem esteve aqui enfim o Luís
Mourão, que ainda não conhecia pessoalmente. É parecido com o que eu
imaginava da epistolografia. Magro, barba mais ou menos em bico como a de um Moniz
Barreto, tímido. Apenas o julgava mais alto. E a sua timidez (eu disse-lhe)
é das (e é o normal nelas) que tem arranques imprevistos e agressividade.
Porque um tímido, e sei-o por mim que o fui sempre doentiamente, não tem grande
autodomínio e traz consigo um ressentimento como pecado original. De modo que,
quando afrouxa na timidez, pode ir dar ao disparate e sobretudo à
agressividade. É uma forma de compensação. Lembro-me de «saídas» disparatadas
na adolescência e sinto muito as ofensas alheias para não reagir duro quando
posso. Mas também acontece não dar conta imediata da ofensa e só tarde reparar
que ela foi ofensiva. Embrulhadas psíquicas que o demónio me tramou. Mas como é
que algumas cartas me dão a imagem física de quem mas escreve? Juro que eu
imaginava o jovem com barba, mais ou menos em bico, e por toda a cara. E quanto
ao psiquismo, podia traçar-lho até à minúcia. Havia nele um lado inexplicável
que tinha cor de seminarista. Mas não o supunha ligado ao seminário. Afinal
teve uma educação em colégio mais ou menos jesuítico. A aventura da tese – que
a Alzira condenou com uma seriedade académica – é um exemplo de um arranque de
timidez. Eu achei piada e colaborei. Mas a Alzira não achou piada nenhuma e
reprovou-me a colaboração. De todo o modo o jovem é muito inteligente e quando
chegar a uma estabilidade psíquica vai ser um grande ensaísta. Daqui a uns dez
anos. Foi a profecia que adiantei à Alzira.
Entretanto hoje tive um sintoma
plausível de doença grave. A confirmar-se eu seguiria o percurso do Namora. Mas já o pensei
e disse: se ele me plagiou largamente, como provou o L. Pacheco, não era de
censurar que eu o plagiasse agora a ele. Ponto final neste humor nigérrimo. Mas
a verdade é que me estou bastante nas tintas para a morte. Tenho 74, é uma
idade decente para a aposentação. Queria era gramar pouco nos preparativos para
a grande viagem. E o Namora gramou que se fartou. Não me agrada. Há uma lei
inexorável a cumprir, de que vale queixar-me? A vida está mais ou menos em
ordem, falta apenas arrumar o Lúcio. Mas estamos no fim do ano lectivo e espero
que até Dezembro ele acabe a tarefa. O seu absurdo, o absurdo da vida com a sua
nula significação, o mistério irritante de haver coisas e o universo para elas,
o enigma que me assolou. Creio que a morte me não perturbará. Mas levo comigo a
inquietação de a não ter decifrado. E a eternidade, a havê-la, não seria menos
absurda que não a haver. Com ou sem tudo o que se quiser, o incompreensível é a
nossa condenação.
E de súbito pergunto-me: não estarei a
mentir? Em tudo quando deixo atrás escrito? A verdade de nós tem algum sentido
e é verdadeira? A luz reflectida do prédio fronteiro, neste entardecer,
projecta-me em sombra a minha cabeça numa estante. Será essa a verdade primeira
e única? Uma sombra e luz à volta. O inapreensível no esplendor que se não
apreende também. Uma sombra que se apaga numa luz que se apaga.
VF
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