O destino não
me dá tréguas. Aqui fica a espada de pau com que o enfrentei mais uma vez.
«Quando fui
informado de que o júri do prémio Montaigne me tinha
atribuído o galardão fiquei em pânico. E ainda estou. Pela distinção em si e
pelo nome que a tutela.
Receber um
prémio é sempre um risco. Ou porque se não merece ou porque é muito difícil
saber recebê-lo. Mas se ele é outorgado sob a égide do autor glorioso dos Ensaios, o caso torna-se ainda mais
delicado. Montaigne foi um grande senhor do espírito, um dos divinos do renascimento, o mais
paradigmático dos fundadores do pensamento moderno, que nele encontra o modelo
de um incansável esforço de objectividade crítica. E o laureado de hoje é um
atribulado poeta que, em vez de se recrear, isolado numa torre de marfim, a
reflectir ociosamente sobre os mistérios da alma em longas análises sábias e
cépticas, teve de pagar à vida todos os tributos e de lhe prestar contas, em
cada página, dos passos rebeldes que deu. Daí a ironia perturbante desta hora
que, apesar de lisonjeira, me não deixa em paz. É inseguro e confuso que aqui
estou, obrigado por uma decisão que só acatei na medida em que me transcendia.
Humilde servidor da literatura portuguesa, é sempre ela que me condiciona
nestes momentos cruciais. Credora, pela sua riqueza singular, de uma atenção
mais demorada e profunda da curiosidade do mundo, nunca me perdoaria se de
alguma maneira contrariasse qualquer sinal de apreço que, mesmo através dos
meus versos, ele lhe quisesse testemunhar. É minha velha convicção de que a
cultura universal tem de ser o somatório de todas as culturas nacionais. E que
basta que falte uma parcela na adição para que a conta esteja errada. Foi, de
resto, Montaigne que assim no-lo ensinou, redigindo a sua obra monumental no
idioma materno, ele que o aprendera só depois de conhecer o latim cosmopolita.
A França primeiro, e o orbe depois. O geral, sim, mas a partir do particular.
Ora o particular lusitano tem sido lamentavelmente ignorado, e génios seus, que
podiam alargar a polifonia planetária, ou são meramente conhecidos de nome, ou nem
isso. O próprio Camões merecia melhor sorte do que ser apenas lembrado em toda
a Europa letrada por ocasião da efeméride multissecular da sua morte.
Contemporâneo, neste extremo do Ocidente, do humanista gaulês, foi como ele uma
consciência pioneira da imagem restaurada do homem universal. Acrescentando ao
convívio erudito dos clássicos um saber de experiência feito, deixou-nos também
o testemunho, decerto menos sereno, mas por isso mesmo mais patético, do fluxo
e refluxo das paixões que fazem de cada criatura uma encruzilhada de
perplexidades. Ambos legitimaram a originalidade da sua arte no culto da
tradição greco-latina, que foi o esplendor matinal da nossa civilização. Mas
enquanto que um é uma presença viva em qualquer latitude da inquietação intelectual,
o outro, nessas mesmas paragens, está reduzido a um registo identificador nas
folhas tumulares das enciclopédias. É, pois, movido por um indeclinável
sentimento de dever que mais uma vez me submeto à dura prova de representar a
voz criadora da língua pátria, enquanto ela não é ouvida em toda a sua
plenitude. No caso presente, embora a responsabilidade seja pesada demais para
os meus ombros, ajuda-me uma circunstância feliz. O patrono da honra que me é
concedida amava, como deixou dito, l’allure
poétique à sauts et gambades. Era também poeta à sua maneira. E essa
particularidade do seu estio sossega-me um pouco. Ao fim e ao cabo, os poetas,
grandes ou pequenos, estão sempre bem uns ao pé dos outros. Com mais ou menos
sede, todos bebem nas mesmas fontes primordiais. E todos comungam na alegria de
saber que nunca faltará quem vele pela pureza das nascentes e que sem a
frescura limpa das suas águas não haveria vida nem esperança à tona árida dos
tempos».
Miguel Torga
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