domingo, 10 de março de 2013

Lisboa, 10 de Março de 1981


O destino não me dá tréguas. Aqui fica a espada de pau com que o enfrentei mais uma vez.

«Quando fui informado de que o júri do prémio Montaigne me tinha atribuído o galardão fiquei em pânico. E ainda estou. Pela distinção em si e pelo nome que a tutela.
Receber um prémio é sempre um risco. Ou porque se não merece ou porque é muito difícil saber recebê-lo. Mas se ele é outorgado sob a égide do autor glorioso dos Ensaios, o caso torna-se ainda mais delicado. Montaigne foi um grande senhor do espírito, um dos divinos do renascimento, o mais paradigmático dos fundadores do pensamento moderno, que nele encontra o modelo de um incansável esforço de objectividade crítica. E o laureado de hoje é um atribulado poeta que, em vez de se recrear, isolado numa torre de marfim, a reflectir ociosamente sobre os mistérios da alma em longas análises sábias e cépticas, teve de pagar à vida todos os tributos e de lhe prestar contas, em cada página, dos passos rebeldes que deu. Daí a ironia perturbante desta hora que, apesar de lisonjeira, me não deixa em paz. É inseguro e confuso que aqui estou, obrigado por uma decisão que só acatei na medida em que me transcendia. Humilde servidor da literatura portuguesa, é sempre ela que me condiciona nestes momentos cruciais. Credora, pela sua riqueza singular, de uma atenção mais demorada e profunda da curiosidade do mundo, nunca me perdoaria se de alguma maneira contrariasse qualquer sinal de apreço que, mesmo através dos meus versos, ele lhe quisesse testemunhar. É minha velha convicção de que a cultura universal tem de ser o somatório de todas as culturas nacionais. E que basta que falte uma parcela na adição para que a conta esteja errada. Foi, de resto, Montaigne que assim no-lo ensinou, redigindo a sua obra monumental no idioma materno, ele que o aprendera só depois de conhecer o latim cosmopolita. A França primeiro, e o orbe depois. O geral, sim, mas a partir do particular. Ora o particular lusitano tem sido lamentavelmente ignorado, e génios seus, que podiam alargar a polifonia planetária, ou são meramente conhecidos de nome, ou nem isso. O próprio Camões merecia melhor sorte do que ser apenas lembrado em toda a Europa letrada por ocasião da efeméride multissecular da sua morte. Contemporâneo, neste extremo do Ocidente, do humanista gaulês, foi como ele uma consciência pioneira da imagem restaurada do homem universal. Acrescentando ao convívio erudito dos clássicos um saber de experiência feito, deixou-nos também o testemunho, decerto menos sereno, mas por isso mesmo mais patético, do fluxo e refluxo das paixões que fazem de cada criatura uma encruzilhada de perplexidades. Ambos legitimaram a originalidade da sua arte no culto da tradição greco-latina, que foi o esplendor matinal da nossa civilização. Mas enquanto que um é uma presença viva em qualquer latitude da inquietação intelectual, o outro, nessas mesmas paragens, está reduzido a um registo identificador nas folhas tumulares das enciclopédias. É, pois, movido por um indeclinável sentimento de dever que mais uma vez me submeto à dura prova de representar a voz criadora da língua pátria, enquanto ela não é ouvida em toda a sua plenitude. No caso presente, embora a responsabilidade seja pesada demais para os meus ombros, ajuda-me uma circunstância feliz. O patrono da honra que me é concedida amava, como deixou dito, l’allure poétique à sauts et gambades. Era também poeta à sua maneira. E essa particularidade do seu estio sossega-me um pouco. Ao fim e ao cabo, os poetas, grandes ou pequenos, estão sempre bem uns ao pé dos outros. Com mais ou menos sede, todos bebem nas mesmas fontes primordiais. E todos comungam na alegria de saber que nunca faltará quem vele pela pureza das nascentes e que sem a frescura limpa das suas águas não haveria vida nem esperança à tona árida dos tempos».
Miguel Torga

Sem comentários:

Enviar um comentário