quinta-feira, 14 de março de 2013

14 – Março (quarta). [1990]

E de súbito a gente repara que entrámos em défice de – como dizer? Daquilo que envolve uma data de coisas que vão desde o heroísmo, idealismo, motivação para agirmos e mesmo sermos diferentes, até ao que nos trabalhou a «espiritualidade», onde cabe toda a realidade do espírito em que se incluía a vivência interior das emoções, ideias, modo de se ser humano. A derrocada do Leste arrastou consigo uma fracção enorme de sermos uns com os outros, de termos uma motivação para sermos em grupo, termos motivos para nos diferençarmos, nos congregarmos ou opormos, pensarmo-nos em função de quaisquer projectos políticos. E o conhecimento de que o cérebro é em alterações que «explicam» as nossas emoções (o medo, a personalidade, o «stress», etc.) reduz a uma certa materialidade o que era da nossa vivência espiritual. A consciência do nosso «eu» fica indemne na sua autonomia, no absoluto de nos sabermos ser. Mas o facto de sabermos como uma simples experiência anatómica perverte tudo o que a isso agregamos, perturba imensamente a verdade do que sentíamos e pensávamos. A «engenharia genética» travou a sua investigação no limiar de uma subversão total do nosso ser humano. Mas sabemos que esse limiar pode ser transposto e desmoronar todo o edifício do que é o nosso modo de ser-se homem. Assim tudo isto abre diante de nós um futuro possível de desertificação. Haverá sempre um abismo entre tudo o que nos demonstram sermos em termos materiais e a imperativa verdade de nos sabermos ser nós. Pode ser-se laboratorialmente outra coisa. Mas a assumpção consciente disso que formos instaura em nós inexoravelmente a consciência desse absoluto de sermos.
Resta no entanto a vida política, o relacionamento dos homens à dimensão mundial. Que monstruosa construção de ideias, sistemas, projectos para se ser humano em ideal de justiça e o mais, a ruir subitamente diante de nós até a um estendal de escombros. Quanta ambição, ódios pessoais fundamentados no pretexto de um projecto político, obras de arte, mormente literárias, fundamentação mesmo da sua dignidade, sonhos de se estar com a História, quantas ilusões desmoronadas com o terramoto. O Mundo inteiro diverte-se a esta hora sobre si para (Interrompido).
VF 

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