sexta-feira, 22 de março de 2013

22 – Março (sexta) [1990]

As zangas são uma coisa curiosa. Desde os motivos à avaliação do seu peso, variabilidade delas para cada um, a relação dela connosco para calcularmos quanto de nós é posto em causa, relação da variedade da ofensa com a importância que nos damos a nós – até à perduração dela para lá da memória das suas razões. Este último pormenor é engraçado. Porque a certa altura reparamos que já não sabemos bem porque nos zangámos, mas continuamos zangados. Saber porquê exige boa memória. Zangámo-nos um dia, há anos, perdemos já a lembrança do porquê, mas sabemos que estamos zangados e então continuamos. Na aldeia as coisas são mais complicadas. Primeiro porque toda a zanga é precedida de ralhos e saber ralhar é uma especialidade de quem tem esse dom. De A ou B diz-se que «sabe ralhar». Ou seja, sabe dar resposta pronta e de arrasar a antagonista, sobretudo se são mulheres. Elas são temidas porque «sabem ralhar» e são rápidas e sintéticas ou demoradas e prolongadas nos insultos. Mas acontece também que as zangas são extremamente instáveis, com súbitas mudanças para de novo se «ficar a bem». Quando eu era rapaz acontecia que abalava de férias com a minha gente a mal com alguém, normalmente com gente da família. Mas quando regressava de novo a férias, já estavam a bem. E então eu, se não era avisado, continuava a manifestar os meus sentimentos de ofendido. Reparava então que já não se estava a mal e aí tinha eu de recompor os meus sentimentos. Era isto uma dança que se repetia constantemente. E então, a partir de certa altura, quando regressava a férias perguntava como iam as coisas no relacionamento da família. E acertava logo o passo com ela. Mas já tinha falado disto, suponho.
VF

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