terça-feira, 26 de março de 2013

26 – Março (segunda). [1990]

Já há pássaros! Já se ouvem! Mesmo assim, devem ser pioneiros ou marginais. Porque os outros, os ordeiros, os cumpridores do regulamento e dos preceitos da Natureza, ainda devem estar em preparativos de viagem. Imagino-os mesmo já de malas feitas, mas sem arrancarem pé e a olharem para o relógio. De todo o modo, já há pássaros. E como eu os amo, a estes aventureiros que se estiveram nas tintas para o horário dos caminhos aéreos e largaram por aí fora ao mínimo sinal de uma luz consequente. E luz já há para encher de alegria um cemitério. Luz nos pinheiros, nas flores domésticas ou vadias, no ar deslumbrado como um sorriso. Saí daqui do meu buraco em que faço de intelectual e fui vê-la na mata, onde é mais luminosa por ser mais livre. Fui até às glicínias e desta vez nem precisei de afocinhar nos cachos pendentes para olhar e sentir o perfume. Sentia-o mesmo a uma certa distância, mais ténue decerto, mas ainda assim bem marcado e envolvente. Decerto, porque o maciço que reveste todo o muro se excitava também com a doce luminosidade e se desfazia em mais perfume. É uma luz singular, de início da vida, a da promessa inteira, não a do delírio estival ou a luz doente do Outono. Luz pura, não tocada ainda de vício ou de doença, luz para se acreditar, em nosso perfeito juízo, que se vai ser imortal.
VF

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