sexta-feira, 8 de março de 2013

O PEQUENO ASSASSINO

Após três dias retido em casa pela chuva, brilhou finalmente o sol. Mal ele me bateu na vidraça, saltei da cama e saí para os campos.
Após duas horas de marcha sob um sol inclemente, as pernas começaram a pedir clemência. Concedi-lha.
Ali perto, um outeirinho coroado de pinheiros, parecia chamar por mim: «Acolhe-te aqui à minha sombra. Indas que te digam que a sombra dos pinheiros não é grande coisa, não acredites. Entra e verás que rico ambiente eles proporcionam.»
Aceitei. Mais que não fosse, por curiosidade. Todos aqueles pinheiros são mais novos do que eu. Na minha infância não havia ali nada. Apenas um morro escalvado, onde o dente das cabras não deixava medrar a carqueja.
Não obstante, o pequeno pinhal tem um aspecto envelhecido. Ninguém o limpa. A caruma, as pinhas, os galhos secos, acumulam-se no chão. Alguns troncos jazem por terra. Escolhi um dos mais periféricos, de modo a ver ao largo, e sentei-me. Na verdade, estava-se ali bem. Temperatura agradável, tranquilidade, um tlintlim de campainhas de gado ao longe, um leve saído de asas, o cheiro a resina, o perfume das várias espécies vegetais e arbóreas em plena floração.
Para mim, um dos maiores encantos da Primavera, é a chegada das aves migradoras. Ali sentado num tronco de pinheiro morto, no silêncio daquele ermo, avoquei-as a todas em pensamento: «Queridas amigas! Dizei-me se chegastes bem e estais de saúde?» Todas elas, cada qual na sua língua, me responderam. O cuco, a poupa, a rola, a andorinha, o tentilhão. Até a codorniz. Quem diria? Eu tinha a ideia de que o canto da codorniz eram apenas vozes de comando e orientação à ninhada. Mas devia estar enganado. É impossível que em fins de Abril a parpalhaça já tenha a ninhada cá fora. Mas não havia dúvida. Lá estava ela: parpalhás, parpalhás, parpalhás.
Migradoras ou não, todo o vale era um falanstério de aves canoras.
Para ajudar à festa, vem de lá um rouxinol e começa a cantar mesmo por cima da minha cabeça. Devagarinho, para não o espavorir, comecei a rodar os olhos. Não era por cima da minha cabeça, mas ali a poucos metros, num ramo de escambroeiro, à orla do pinhal.
Estava eu a olhar para o pequeno e divino cantor, vem de lá um gaio em voo picado, garras abertas e amarfanha-o. Fiquei siderado! Um gaio a matar um rouxinol? Que se passa aqui? Que aberração é esta? Estará o gaio doido? Pervertido? Com a raiva? Com o vírus H5N1? Ou estarei eu a ver mal?
Não estava. Num abrir e fechar de olhos, o gaio tinha o rouxinol morto e depenado. E quando eu julgava que o ia comer, que faz o monstro? Empalou-o num espinho do escambroeiro…
Fugi dali espavorido, a benzer-me com a mão esquerda.
– Viste lobo, rapaz? – perguntou o Zé Melro que passava, atrás das vacas.
– Trinta vezes pior. Se te disser, nem acreditas.
– Lobisomem?
– Um gaio a matar um rouxinol...
Ele riu-se:
– E era grande, o gaio?
– Pequeno, rapaz! Um dez reis de gente…
O Melro voltou a rir-se:
– Nunca ouviste falar no picanço?
– Picanço?!
– E cascarrolho?
– Ai esse conheço-o bem.
– Pois são da mesma família. A ave de rapina mais pequena que por aí anda. Duas espécies. Um que fica aí todo o ano. Outro, um pouco maior e mais colorido, que chega por esta altura e se vai embora em Setembro. Deve ser esse o que tu viste. Parece realmente um gaio. Mas, se reparares bem, é diferente. Mais pequeno, bico terminado em gancho, pernas e garras às listas castanhas e escuras. Mas há um pormenor que o distingue de todas as outras aves. Uma pequena mascarilha escura que lhe dá o aspecto de um ladrão. E é precisamente isso o que ele é. Um pequeno assassino.
Voltei atrás, pé ante pé, por entre os pinheiros. Lá estava o bandido, com o rouxinol empalado numa pua do escambroeiro. Reparei-lhe no variegado da plumagem, com predominância do vermelho, no bico em gancho de pirata, nas garras poderosas, na mascarilha de assaltante de bancos.
Retirei-me descontente comigo e com ele. Comigo, porque, julgando conhecer todos os pássaros da minha terra por dentro e por fora, afinal confundi um picanço com um gaio. Com ele, por ter aquele ar simpático e misterioso, e, afinal, não passar dum assassino.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 88 e ss.)

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