sexta-feira, 1 de março de 2013

1 – Março (quinta). [1990]

Hoje esteve aí o João Falcato. É a segunda vez que o vejo desde há trinta anos quando ele ia de Borba a Évora à frente da caravana dos alunos do seu colégio que iam lá para chumbar. Bom, às vezes passavam. Mas agora tem aparecido, embora venha a Lisboa todas as semanas, porque me queria a opinião sobre um seu livro em torno do Namora. E das duas vezes que veio, almoçámos. E das duas vezes que almoçámos, recaímos nas memórias de Coimbra, essa doença sem cura como a tísica do Nobre. Mas como de Coimbra eu tenho sobretudo a quebreira da evocação, tenho poucos episódios a contar. E desses poucos, já poucos terão sobrado dos que contei. De modo que, se calhar, não há senão que repetir-me. Terei contado o que se segue?
Nesse tempo em que eu andava em Coimbra, ouvir conferências era uma coisa normal como dar parabéns ou pêsames. A gente ia ouvir, mas não me lembro exactamenle porquê. Talvez porque o professor no-las aconselhava, talvez por não termos que fazer, talvez para explorar o terreno para algum namoro. Eu por mim não me lembro de nenhuma conferência que me tivesse deixado uma pegada na alma. Mas ouvi muitas. Ora porque a coisa não era divertida, do que me lembro muito bem era do processo utilizado pelo conferente para ir passando as folhas. Os mais sensatos, para nos não desencorajarem, costumavam ir depondo na mesa as folhas que iam lendo. E assim, o que mais nos prendia a atenção era o volume daquelas que ainda faltava ler. A gente ia vendo a espessura das que o conferencista ainda tinha na mão e ia ganhando coragem para aguentar até ao fim. Regulávamos assim a nossa paciência com a certeza cada vez mais segura de que estava quase a acabar. E à última folha, que às vezes já não tinha consistência na sua mão oratória e tinha de segurar com as duas mãos, nós soprávamos de alívio e dávamos mesmo grandes palmas calorosas por nos livrar do suplício. Mas havia outros oradores que tinham um processo diferente, cheio de perfídia. Eram aqueles que à medida que iam lendo, passavam as folhas lidas para o lado de trás das que faltavam. Como saber assim quando acabava a tortura? O orador ia palrando mas não tínhamos sinal algum visível de quando se iria calar. Porque, com as folhas sempre juntas, estava sempre no princípio. Decerto o assunto lá ia andando e com um pouco de atenção dava-se conta do andamento. Mas nunca se podia saber ao certo quando o andamento travava. Porque sobre Adão e Eva como sobre os calos da plaina de S. José ou a luxúria da Tareja (tema talvez improvável) podia o orador discorrer duas horas. De modo que, à perfídia do conferente, nós respondíamos normalmente com a sacanice de nos rasparmos.
Mas o cúmulo do cinismo era o dos conferencistas que iam depondo as folhas à medida que as iam lendo e nós respirando. E quando já era a última, a gente pensava: é agora. Mas não era. Porque os perversos, depois de esgotada a provisão das folhas lidas, iam buscar outro molho e continuavam sossegados a oratória. Nós dávamos urros e regra geral mandávamo-los onde se devia e alçávamos.
Havia, no entanto, entre os ouvintes, um tipo que era fatal. Suponho que as conferências deviam exalar um cheiro especial, a sebo ou suor, e o ouvinte consuetudinário decerto apanhava o cheiro na aragem. Porque não falhava uma e chamávamos-lhe assim o «papa-conferências». Era um homem baixo, entroncado, com uma cabeça robusta para aguentar tudo e já toda encanecida. Quanta conferência ele já teria deglutido. Imagina-se a quantidade de saber que o encaneceu. Mas o que havia de singular neste paciente é que mal começava o orador a orar, começava ele logo a dormir. E dormia com convicção, o queixo enterrado no peito, o arco do dito a arfar em repouso. A gente olhava a confirmar a boa digestão da matéria para o espírito, ele confirmava a nossa confirmação. Passavam as folhas do conferente, passavam os minutos ou as horas da nossa paciência, ele dormia. Suponho que não ressonava para não perturbar a ilustração geral. Mas era um dormir ajustado ao ressono que se calhar guardava depois para a mulher. Até que a oratória chegava ao seu explicit e o homem acordava sobressaltado ao entusiasmo das nossas palmas. E erguia-se tranquilamente em direcção à porta, suponho que para ir ouvir mais alguma outra conferência. Porque se a houvesse, estava lá caído com certeza, como um beata numa igreja ou um bêbedo numa taberna. E todas para um alimento comum, porque o espírito tem muitas maneiras de ser e de se alimentar…
VF 

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