Hoje esteve aí o João Falcato. É a
segunda vez que o vejo desde há trinta anos quando ele ia de Borba a Évora à frente da caravana
dos alunos do seu colégio que iam lá para chumbar. Bom, às vezes passavam. Mas
agora tem aparecido, embora venha a Lisboa todas as semanas, porque me queria a
opinião sobre um seu livro em torno do Namora. E das duas
vezes que veio, almoçámos. E das duas vezes que almoçámos, recaímos nas
memórias de Coimbra, essa doença sem cura como a tísica do Nobre. Mas como de
Coimbra eu tenho sobretudo a quebreira da evocação, tenho poucos episódios a
contar. E desses poucos, já poucos terão sobrado dos que contei. De modo que,
se calhar, não há senão que repetir-me. Terei contado o que se segue?
Nesse tempo em que eu andava em Coimbra,
ouvir conferências era uma coisa normal como dar parabéns ou pêsames. A gente
ia ouvir, mas não me lembro exactamenle porquê. Talvez porque o professor no-las
aconselhava, talvez por não termos que fazer, talvez para explorar o terreno
para algum namoro. Eu por mim não me lembro de nenhuma conferência que me
tivesse deixado uma pegada na alma. Mas ouvi muitas. Ora porque a coisa não era
divertida, do que me lembro muito bem era do processo utilizado pelo conferente
para ir passando as folhas. Os mais sensatos, para nos não desencorajarem,
costumavam ir depondo na mesa as folhas que iam lendo. E assim, o que mais nos
prendia a atenção era o volume daquelas que ainda faltava ler. A gente ia vendo
a espessura das que o conferencista ainda tinha na mão e ia ganhando coragem
para aguentar até ao fim. Regulávamos assim a nossa paciência com a certeza
cada vez mais segura de que estava quase a acabar. E à última folha, que às
vezes já não tinha consistência na sua mão oratória e tinha de segurar com as
duas mãos, nós soprávamos de alívio e dávamos mesmo grandes palmas calorosas
por nos livrar do suplício. Mas havia outros oradores que tinham um processo
diferente, cheio de perfídia. Eram aqueles que à medida que iam lendo, passavam
as folhas lidas para o lado de trás das que faltavam. Como saber assim quando
acabava a tortura? O orador ia palrando mas não tínhamos sinal algum visível de
quando se iria calar. Porque, com as folhas sempre juntas, estava sempre no
princípio. Decerto o assunto lá ia andando e com um pouco de atenção dava-se
conta do andamento. Mas nunca se podia saber ao certo quando o andamento
travava. Porque sobre Adão e Eva como sobre os calos da plaina de S. José ou a
luxúria da Tareja (tema talvez improvável) podia o orador discorrer duas horas.
De modo que, à perfídia do conferente, nós respondíamos normalmente com a
sacanice de nos rasparmos.
Mas o cúmulo do cinismo era o dos
conferencistas que iam depondo as folhas à medida que as iam lendo e nós
respirando. E quando já era a última, a gente pensava: é agora. Mas não era.
Porque os perversos, depois de esgotada a provisão das folhas lidas, iam buscar
outro molho e continuavam sossegados a oratória. Nós dávamos urros e regra
geral mandávamo-los onde se devia e alçávamos.
Havia, no entanto, entre os ouvintes, um
tipo que era fatal. Suponho que as conferências deviam exalar um cheiro
especial, a sebo ou suor, e o ouvinte consuetudinário decerto apanhava o cheiro
na aragem. Porque não falhava uma e chamávamos-lhe assim o «papa-conferências».
Era um homem baixo, entroncado, com uma cabeça robusta para aguentar tudo e já
toda encanecida. Quanta conferência ele já teria deglutido. Imagina-se a quantidade
de saber que o encaneceu. Mas o que havia de singular neste paciente é que mal
começava o orador a orar, começava ele logo a dormir. E dormia com convicção, o
queixo enterrado no peito, o arco do dito a arfar em repouso. A gente olhava a
confirmar a boa digestão da matéria para o espírito, ele confirmava a nossa
confirmação. Passavam as folhas do conferente, passavam os minutos ou as horas
da nossa paciência, ele dormia. Suponho que não ressonava para não perturbar a
ilustração geral. Mas era um dormir ajustado ao ressono que se calhar guardava
depois para a mulher. Até que a oratória chegava ao seu explicit e o homem acordava sobressaltado ao entusiasmo das nossas
palmas. E erguia-se tranquilamente em direcção à porta, suponho que para ir
ouvir mais alguma outra conferência. Porque se a houvesse, estava lá caído com
certeza, como um beata numa igreja ou um bêbedo numa taberna. E todas para um
alimento comum, porque o espírito tem muitas maneiras de ser e de se alimentar…
VF
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