domingo, 1 de maio de 2011

A MÚSICA DE PARAFITA

No dia 8 de Janeiro fui à Festa da Música.
A Parafita, claro.
Mandaram-me estar lá ao meio-dia.
Fui pontual.
– Para a borga, andas tu sempre ligeiro... – diziam-me, quando eu era garoto.
Ai se eles me vissem agora, depois de velho... O que não diriam...
Adiante.
Na suposição e bom propósito de que, lá para as tantas, por razões óbvias, teria dificuldades em manobrar o carro no labirinto do coração da aldeia, deixei-o na estrada, apontado a Peireses.
Estava um dia neutro, de nuvens altas e temperaturas baixas, sem chuva nem sol, um desses estuporados dias com que o senhor Inverno costuma flagelar as orelhas dos Barrosões.
À porta da Casa do Miranda, hoje propriedade do Rv. Dr. Manuel Alves, arcipreste de Valpaços, vi uma valente fogueira no pátio. Avancei para ela de mãos estendidas ao brasido. Dois joviais, corados e nédios cavalheiros, matavam o bicho com vitela assada, pão e vinho. Cortesmente, ofereceram. Agradeci no mesmo tom. Que ainda não chegara a minha hora. Eles justificaram-se. Tinham de se ir aviando porque, dali a pouco, teriam de servir os outros. Dei-lhes razão.
– E os músicos?
– Estão em assembleia-geral.
– Aonde?
– Aí mais arriba, na antiga casa da Maria Porfíria. Conhece?
Então não havia de conhecer. Maria Porfíria, a dos Sete-Males... De qual deles teria morrido?
Uma simpática donzela, com ares de filha de castelão ou afilhada de padre, prontificou-se a indicar-me a casa da defunta Maria Porfíria.
Afinal a assembleia havia terminado e a Música estava já na rua, rodeada de apoiantes e admiradores. Lá estavam os Irmãos Lestras, o Custódio, muitos outros. Lá estava o Mestre, aureolado de colcheias e de juventude, a dispor os instrumentos no terreno, a dar o lamiré, a pedir atenção. E foi a arruada triunfal, apoteótica, arrebatadora.
Confesso que me senti comovido enquanto, instintivamente, acertava o passo pelo rufo da caixa, e os pássaros batiam as asas como quem bate palmas, e as pessoas vinham às janelas, e os metais ecoavam ao longe, pelas quebradas dos montes. E tive saudades.
Saudades da minha juventude.
Nesses áureos tempos, fazia parte dos usos e costumes da minha aldeia uma festa a Santo António. Coisa simples. Sermão e missa cantada e, pela tarde, bailarico no Eirão do Forno, ao som de qualquer realejo ou concertina roscofe.
Mas em 1945, sendo mordomo o Ti Catarro, uma grande e inesperada notícia varreu Peireses de alto a baixo: vinha aí a Música de Parafita!
Os mis novos davam upas e batiam palmas: Viva! Viva!
Os mais velhos punham cara de caso:
– E quem paga?
– Eu – respondia o Ti Catarro.
– Tu?!
– Promessa.
– Promessa?!
– Para acabar a guerra. Prometi a Santantoninho que, se ele acabasse com a guerra, lhe chamava a Música de Parafita para a festa. Como a guerra acabou...
– Tens de cumprir...
– Com promessas não se brinca...
Vai daí mestre Saias, que fazia a sua perninha a cantar ao desafio e era um poço sem fundo de citações bíblicas, decerto lembrado de Jericó, cidade cujos muros se desmoronaram ao som das trombetas de Josué, lançou o alerta:
– Rapazes! Escorai bem essas casas!
– Para quê?
– Se a Música de Parafita faz aí uma arruada, alaga-se tudo...
Os vizinhos riram-se.
E fizeram bem. Os acordes da Música de Parafita não chegam para alagar uma casa. Mas sobram para nos alagar a alma e os olhos em lágrimas de comoção artística...
VIVA A MÚSICA DE PARAFITA!
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 71 e ss.)

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