sexta-feira, 6 de maio de 2011

Cadernos de Lanzarote (Diário de 1993)

6 de Maio
Maridos e Mulheres de Woody Allen. A mesma história, os mesmos diálogos, os mesmos perdidos e achados, a mesma infalível previsibilidade. Uma câmara trémula, instável, como um vídeo de família, constantemente atrasada em relação ao princípio do plano, logo correndo para agarrar o tempo, dividida entre a ansiedade de registar integralmente o momento, antes de o deixar ir-se, e o impossível desejo de tornar atrás, à procura do gesto, do olhar, da palavra que ficaram por captar e sem os quais, agora, parece falto de coerência e de sentido o que se está contando. Estes homens e estas mulheres de Woody Allen, sempre idênticos nos encontros e desencontros das suas vidas, fizeram-me pensar nos átomos de Epicuro. Imersos no mesmo vazio, caindo, caindo sempre, mas subitamente derivando na direcção de outros átomos, de outros homens e mulheres, tocando-os ao de leve ou a eles se reunindo, e depois outra vez livres, soltos, solitários ou caindo juntos, simplesmente...
Horas demasiado lentas, dias demasiado rápidos.
Leio El Porvenir es Largo, a autobiografia de Althusser, impiedosa e descarnada, como só a poderia ter escrito quem, como ele, havendo passado pela experiência de um nada psiquiátrico, se preparasse, lucidamente, para a entrada na morte, no nada absoluto, depois de uma vida durante muito tempo assombrada pela consciência angustiante de ser nada. Leio e, inevitavelmente, sou levado a pensar no meu Livro das Tentações, sempre anunciado e sempre adiado: que não será um livro de memórias, respondo eu, quando me perguntam acerca dele, mas sim, como declarei ao José Manuel Mendes, na entrevista à Setembro, um livro do qual eu possa vir a dizer: «Esta é a memória que eu tenho de mim próprio.» A questão, então, estará em saber se me contentarei com devanear aprazivelmente pela superfície lisa da memória aparente ou se, como Althusser fez, serei capaz de remover e varrer essa camada neutra, composta de reordenamentos de imagens e de sensações, de condescendências e desculpas, de distorções, intencionais ou involuntárias, para cavar fundo e continuar cavando, até à medula oculta dos factos e dos actos. Provavelmente, a maior de todas as tentações, hoje, é a de calar-me.

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