9 - Maio (terça). Extraordinário o revivalismo salazarista que por aí vai. As livrarias transbordam de obras preparadas para o centenário e atiradas às braçadas ao público. Há de tudo, pareceu-me. Fotobiografia, biografias sem fotos, selectas de trechos selectos e por aí fora. Mas um dos livros que me chamou mais a atenção traz na capa o retrato do grande homem ainda novo, ajoelhado num genuflexório em conversa íntima com o Altíssimo. Sobre que estariam conversando? Apliquei o ouvido que ouve bem e que é o reaccionário, mas não entendi grande coisa. Mas pelo ar sério e um tanto compungido do suplicante, e mesmo por uma ou outra palavra apanhada ao acaso (sossego da oração, brandura, safanões e assim) devia estar a tentar subornar o Altíssimo para a causa. Ele que compreendesse bem, porque o bem-estar público, a paz nas ruas, a morigeração dos costumes e outras necessidades comunitárias, enfim, ele que fizesse um esforço e entendesse. A coisa doía-lhe, ele que não tivesse dúvidas. Mas como continuar a obra do Afonso Henriques? do Nuno? da Padeira? Depois nem palavras soltas ouvi. Falava em silvos de bzz bzz bzz, tudo segredado em especialidades que se dizem ao ouvido. Talvez estivesse a falar do seu projecto de uma torradeira eléctrica que grelhasse os inimigos da Nação à dúzia. Ou do seu projecto de ser um clássico da língua para o Saraiva o meter na sua História da Literatura. Ou dos seus futuros pecados da carne quando estivesse sozinho na cama. Ou da desse chato do bispo do Porto que há-de querer também ter opiniões não eclesiásticas, Ou de. E agora: porquê este revivalismo? É simples mas não estou para aí virado. Estamos em Fontanelas, viemos hoje e eu trouxe comigo os meus nervos histéricos que me põem na raia de enlouquecer. E se me ponho para aqui na cavaqueira salazaresca, rebento mesmo. Ele que continue lá no inferno que está muito bem. E eu que continue aqui ao sol que não estou pior. E acabou.
conta-corrente – nova série I (1989)
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