segunda-feira, 2 de maio de 2011

Vergílio Ferreira (2 de Maio de 1989)

2 - Maio (terça). Um destes dias vi na TV alguns pedaços de um filme «dos anos 30». Já era então gente de ver filmes e reconheci-me nele, ou antes, reconheci que me tinha reconhecido. Filme localizável, filme comercial para o seu tempo, e portanto suficientemente imbecil. Mas o que me chamou a atenção foi que os seus actores seria impossível funcionarem hoje. Não apenas porque tinham então fixado a sua imagem – galã, jovem amorosa, etc. – desaproveitável hoje, para papéis de velhos, para o que só raros actores se transpõem, mas sobretudo porque eles tiveram uma época de serem actores, como outros a têm para serem futebolistas. Ora a questão pôs-se-me para o artista. Como é possível que um escritor, que fixou a sua imagem de sê-lo na obra já realizada, pode persistir numa época que já não é a sua? Quando foi da pintura abstracta, houve um pintor que do próprio Picasso disse que s'eloigne – Picasso, o Proteu da pintura. Num tempo de etapas históricas largas, foi possível um Ticiano. Mas que significava um ChagaI do fim? Ou Rouault? Mas na literatura a coisa agrava-se porque os seus limites são mais definidos ou menos elásticos. Perguntam-me com frequência: que está a escrever? A pergunta é uma variante de «como passa você»? Mas de todo o modo fico entalado. Porque não posso dizer «não escrevo mais nada» e isso é uma espécie de desmentido à verdade do que escrevo, ou digo «Tenho um romance em meio» e isso significa que estou a ler tolinho. De modo que arranjei uma variante que dá para os dois lados: «escrevo mas não penso publicar». Exclamação de protesto como se fossem de ânimo para um doente incurável. Mas na realidade, sinto-me em falso. Nunca aliás tive o meu «momento». Mas o que o não foi, é-o menos, atirado para quando o devia ter sido. É uma chatice a obsessão que se me impôs e que foi a de dar a emoção dos meus nervos ultra-sensíveis, em termos abstractos que não dessem tanto a razão dela como ela própria. Já o disse algures: Sá-Carneiro deve ter tido a mesma mania. Mas já não sei a que propósito vem isto. Aliás, já sei: a propósito do actor que foi em escrita como outros o foram no «écran». E à mesma distância hoje para mim. Vi as folhas da tradução francesa de Aparição. Tudo aquilo está certo. Menos o ponto em que me situo para isso que está certo e que é em parte errado. Que pena não poder escrever o livro hoje. Seria um grande livro. Palavra de honra. Aliás, 30 anos a ser lido por imensa gente, deixaram dele quase só os ossos. Mas esses, a ossatura, dou um tiro a quem me disser que precisa de cálcio.
conta-corrente – nova série I (1989)

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