segunda-feira, 2 de maio de 2011

Os Cordoeiros: Domingo, Maio 2 [2004]

Domingo, Maio 2

Rodrigo Gurgel
# posto por Rato da Costa @ 2.5.04

DÁ QUE PENSAR... II

Moreira da Silva, Director-Geral Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, pediu a demissão, "por razões pessoais e, sobretudo, profissionais", noticia o Público.
Em funções desde Outubro de 2001, este magistrado judicial tinha sobrevivido à nomeação de Luís Gabriel Catarino, em Outubro de 2003, para Director-Geral.
Tendo a seu cargo a área da investigação, o trabalho que desenvolveu pautou-se por uma grande eficácia, estabelecendo um profícuo relacionamento com o Ministério Público.
A sua saída, neste momento, apenas se pode entender como uma condenação politicamente adiada por não ter sido politicamente oportuno declará-la quando da entrada do desembargador Catarino.
# posto por til @ 2.5.04

"Da Justiça à Democracia, passando pelos sinos"

Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.
Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês.
"Mas então não morreu ninguém?", tomaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."
Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-se para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a espoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido.
... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo ...
Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando.
De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável a vida e o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.
Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido.
Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma de suas negações. Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenha dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-se nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.
E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos.
Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isso é verdade, mais é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, que o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portando os primeiros responsáveis, se vão tomando cada vez mais em meros “comissários políticos” do poder económico, com objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder conviverem, para depois, envolvidas nos açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes.
Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos tome demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.
Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.

Discurso de encerramento do Forum Social Mundial 2002, de Porto Alegre



José Saramago
# posto por Rato da Costa @ 2.5.04

DÁ QUE PENSAR...

Hoje, no Público, dá-se conta de algumas ideias mestras transmitidas pelo juiz Conselheiro Marques Vidal (ex Vice Procurador Geral da República e ex Director da PJ) numa conferência que teve lugar no passado dia 30 de Abril, em Águeda, intitulada "Um olhar sobre a Justiça".
No mesmo dia, portanto, em que Laborinho Lúcio (que não chegou a Juiz Conselheiro, nem a (vice) PGR, nem sequer a Provedor de Justiça) proferia, em Lisboa, uma conferência sobre "Mediatização da Justiça". Pura coincidência, certamente, mas que não deixa de ser curiosa.
Conhecendo-se o percurso profissional do senhor Juiz Conselheiro (outra pura coincidência: era director da PJ à data do alegado desaparecimento de importantes documentos, designadamente fotos, que teriam sido entregues àquela polícia, os quais, também alegadamente, implicariam altas personalidades da vida pública nacional em actividades pedófilas no âmbito da Casa Pia) e sendo fácil presumir, também face ao teor dos seus recentes escritos, algumas das motivações para tanto afã na intervenção cívica, o que se respiga daquele artigo do Público - sobretudo o que sê lê nas entrelinhas - dá que pensar ... penso eu de que.
"Será a crise da Justiça tão importante que seja prioridade no nosso país? E atravessará ela a crise de que falam os jornais? Na sessão "Um olhar sobre a Justiça", o magistrado admitiu que "nem tudo vai bem, mas acrescentou que esta realidade "não deve ser olhada como a maior crise do país e da humanidade". E "o que é preciso", defendeu, "é ter um Governo suficientemente forte para racionalizar a administração da Justiça, acabar com os corporativismos e preparar a comunicação social para a olhar como qualquer outro fenómeno, com equilíbrio". Depois do 25 de Abril, tudo o que foi poder neste país, os comunistas de Vasco Gonçalves aos socialistas de Mário Soares, até ao PSD de Cavaco e Durão, não pôs ordem nos juizes, nos magistrados do Ministério Público e nos funcionários judiciais", acusou Marques Vidal. "Os corporativismos têm corroído o miolo da organização dos tribunais", censurou o juiz-conselheiro jubilado, para quem "é preciso acabar com os benefícios de certos magistrados que se julgam muito importantes só porque são magistrados". 
# posto por Kamikase @ 2.5.04

Um Grande Advogado

Deixou-nos, na manhã de ontem, discretamente, como sempre fora, o Grande Advogado António José de Sousa Pereira.
Grande figura política que também foi, a sua grandeza moral situava-o acima dos partidos e, por isso, por todos era respeitado e venerado.
Alguns dos Cordoeiros, que tiveram o privilégio de com ele privar durante muitos anos e de sempre contar com a sua palavra amiga e sempre lúcida, prestam-lhe aqui a sua homenagem, com imensa saudade.


L.C.
# posto por Rato da Costa @ 2.5.04


A FORMAÇÃO DOS MAGISTRADOS É UM DEBATE DOS CIDADÃOS

A formação dos magistrados é um tema essencial do debate sobre a justiça. E, curiosamente, não o tem sido. O debate tem oscilado entre a visão fragmentada de processos concretos e o apelo às alterações legislativas. Pouco se tem quedado nas condicionantes do funcionamento do sistema e da aplicação da lei. E o recrutamento, a selecção e a formação dos juizes e procuradores é uma dessas condicionantes.
Se se continuar a passar ao lado deste tema, como doutros que determinam a qualidade da administração da justiça, corre-se o risco de, onde devam ser feitas mudanças, continuar a ser apenas a lei a mudar. O que é manifestamente pouco, quando não contraproducente, particularmente se não se procura compreender se o que está mal é a lei ou a sua aplicação, ou se se pretendem superar por esta via a falta de meios ou as práticas deficientes. A experiência tem-no demonstrado.
A formação não é certamente o caminho mais fácil, mais rápido ou mais económico - mas é o caminho mais seguro para uma melhor prática judiciária. Por isso, a reflexão sobre a justiça não pode subalternizar a reflexão sobre a formação; por isso, o investimento na justiça não pode subalternizar o investimento na formação.
O escasso debate tem sido acompanhado por um também escasso investimento nos meios e na sua valorização profissional. A complexidade social tem aumentado, a complexidade dos litígios submetidos à apreciação e decisão do sistema de administração da justiça tem aumentado, a complexidade do sistema normativo tem aumentado, a exigência e a capacidade crítica dos cidadãos face aos aplicadores da lei tem aumentado, o controlo processual e público da actividade dos magistrados e dos tribunais tem aumentado, a preparação e apetrechamento técnicos de importantes sectores que se relacionam diariamente com a prática judiciária tem aumentado. A resposta a esta realidade, nos últimos anos, tem sido escasso investimento, escassos recursos para a formação dos magistrados, introdução de processos especiais de recrutamento e selecção menos exigentes, redução dos períodos de formação de forma aleatória, a indiferença de sempre à importância da formação contínua.
Mais magistrados judiciais e do Ministério Público, recrutados e "encartados" mais depressa, para responder no imediato, da forma mais fácil e aparentemente mais económica, ao aumento da procura do sistema de justiça - tem sido esta a opção!
As tentativas - que as tem havido - de provocar e organizar a reflexão aberta sobre as vias de acesso às magistraturas, sobre os objectivos, as áreas essenciais, a organização, as metodologias e a responsabilidade pela formação, sobre a organização judiciária a gestão dos quadros, não têm tido grande capacidade de resistência. Sucumbem à rotina e à agenda mediática. Mais uma vez parece ter acontecido isso à mais recente das tentativas: o Congresso da Justiça.
Vinte e cinco anos de actividade completa este ano o Centro de Estudos Judiciários. A experiência desta instituição responsável pelo recrutamento, selecção e formação dos magistrados judiciais e do Ministério Público (que é também uma experiência de resistência, persistência e imaginação em face das inúmeras dificuldades que enfrenta) é insuficientemente conhecida e está por analisar e avaliar. Estas são algumas constatações, incómodas, necessárias ao debate que tem de ser alargado e público.
O recrutamento, selecção e formação dos magistrados não é, de facto, um problema interno deste grupo profissional. É um dos aspectos, uma parcela, do debate sobre o ensino do direito e a preparação para o exercício das profissões forenses. A este propósito, verificou-se um grande consenso no Congresso da Justiça sobre a necessidade de se proceder a uma análise da adequação do ensino do Direito ministrado pelas Universidades às necessidades das profissões forenses; sobre a criação, aproveitando a provável redução da licenciatura em Direito para 4 anos, de um período de formação universitária, pós-licenciatura, tendencialmente com a duração de um ano, destinado à preparação conjunta para o ingresso nas profissões forenses, cuja organização teria a intervenção do Centro de Estudos Judiciários e da Comissão Nacional de Formação da Ordem dos Advogados, sendo a sua frequência com aproveitamento requisito da admissão à candidatura à formação profissionalizante; sobre a utilidade do intercâmbio de formadores, de experiências e a realização de acções conjuntas durante a formação inicial diferenciada; sobre a necessidade da formação contínua e o incremento da sua realização conjunta entre magistrados e advogados.
É um dos aspectos do debate sobre as atribuições constitucionais dos tribunais, sobre a legitimidade do poder judicial, sobre o estatuto dos juizes e o estatuto e as atribuições do Ministério Público, sobre o funcionamento do sistema de justiça e a sua relação com os cidadãos, sobre a aplicação do direito - em suma, sobre a justiça que, nos termos da Constituição da República Portuguesa, os tribunais administram em nome do povo.
Quais os requisitos para o ingresso na magistratura judicial e na magistratura do Ministério Público, quais as competências imprescindíveis, qual a formação exigível para que a função judicial seja exercida por magistrados tecnicamente competentes, com uma boa compreensão do seu estatuto constitucional e profissional, culturalmente esclarecidos e socialmente empenhados? Este é também um debate dos cidadãos.
Foi há alguns meses anunciada publicamente a constituição de uma comissão que iria preparar a alteração da legislação sobre esta matéria (concretamente, da lei que regula a estrutura e funcionamento do Centro de Estudos Judiciários).
A preparação desta alteração legislativa não pode circunscrever-se a um entendimento institucional entre representantes dos órgãos de cúpula e gestão das magistraturas, com a participação do Director do CEJ e sob a égide do Ministério da Justiça.
Do poder político exige-se o conhecimento público da sua opção política. Das outras entidades envolvidas exige-se que compreendam que as suas opções têm de ser sujeitas não só ao debate nas magistraturas, mas ao escrutínio público.
Legislar sobre esta matéria é uma competência da Assembleia da República, que pode, contudo, autorizar o Governo a fazê-lo. Mas, a avaliação da já grande experiência portuguesa nesta matéria, o estudo comparado das opções ensaiadas noutros países, a promoção de um alargado processo de audição parlamentar e do debate público - são passos necessários para que se evite um resultado pobre. E o resultado será pobre se for pouco participado e reflectido, se não comprometer o poder político na assunção das suas responsabilidades quanto às condições de execução dos programas de formação, se não for realmente inovador quanto à formação contínua, se estiver obsessivamente centrado no próprio umbigo de cada uma das magistraturas.


RUI DO CARMO
Procurador da República, Director-adjunto do Centro de Estudos Judiciários
publicado no jornal Público de hoje
# posto por Kamikase @ 2.5.04

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