quarta-feira, 11 de maio de 2011

Cadernos de Lanzarote (Diário de 1993)

11 de Maio
Não acordei no dia 15, mas movo as pernas muito melhor. Os fémures tornaram à sua íntegra e aprumada natureza, e portanto deixei de caminhar como se precisasse de muletas e tentasse andar sem elas. De manhã fomos às compras ao pueblo. A Montaña Blanca estava ali, parda, alta, seca, com o seu rebuço de rochas esburacadas, e eu disse, contente como um rapazinho a quem tivessem dado o brinquedo desejado: «Aquela já a conheço.» Resposta de Pilar: «Pois já, e uma vez que quiseste começar pela mais alta, agora não precisas subir mais nenhuma.» Capaz a andaluza de ter razão: está claro que o Hillary, o outro, o autêntico, depois de ter posto o pé no coruto do Everest, não se rebaixaria a vir a Lanzarote para subir a Montaña Blanca...
Javier trouxe-me do correio de Arrecife mais um pacote de livros provenientes de Lisboa: abro-o, e ele é o João de Barros, ele é o Damião de Góis, ele é o Rui de Pina, ele é o Zurara, e o Príncipe Perfeito de Oliveira Martins, e a História da Sociedade em Portugal no Século XV de Costa Lobo, e os Itinerários de Veríssimo Serrão, e até (nunca se sabe) o Reinado Trágico de João Grave... Jamais um livro meu, desses que a gente apressada chama «romances históricos», teve o favor do apoio estratégico e táctico de tão grossa e variada artilharia. Muito me temo, porém, que desta vez tudo termine em pólvora seca, ou em espirro de mijarete, para dizê-lo menos respeitosamente.
José Saramago

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