terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

5 – Fevereiro (sexta) [1990]

Com o feroz colete de forças infligido ao meu físico pela múltipla medicação, vou ficando alguns dias mais viável entre os humanos. E até tenho às vezes assomos de gula. E até por vezes apeteço e cumpro a embriaguez de um cigarro. Assim fui hoje – e há quanto tempo não ia – ver o que havia pelas livrarias da avenida de Roma. Lá estive na Barata e um pouco conversei com o pobre pai, fortemente sucumbido com a morte (suicídio?) do filho. Conheci o rapaz. Tinha boa presença, um certo ar desafrontado de quem assentou quanto ao futuro. E foi o que o pai me confirmou ao referir a obsessão do filho com o destino da livraria dele e os projectos que para ela vivia intensamente. Matou-se? Se sim, naturalmente não sei porquê. Mas o porquê de um suicídio, como de todo o nosso anormal, não está nele mas em nós. O resto é a tal «ocasião» que faz o «ladrão». No meu romance diz o narrador (que foi juiz) não dever condenar apenas quem comete um crime, mas ainda quem o cometeria, se estivesse em situação de o cometer. Assim Deus é injusto em mandar para o inferno só o pecador, porque deveria atirar para lá todo o patifório que só não teve oportunidade de se revelar o que é. É essa uma justiça que só ele poderia fazer. Porque só ele conhece quais os sacanóides que se ficaram em «potência», apenas porque lhe não calhou estarem em situação de passarem a «acto».
Mas por falar em romance. Então não é que me apetece já avançar com ele para o gemer dos prelos? Tudo (quase) do que nele concentro de excitação, trabalho de condenado, encantamento, desânimos e o mais dos sentimentos e pulmadura com que o realizei, de súbito esmaeceram para o meu entusiasmo. Amanhã vou mandar ao Joaquim Vital (da «Différence») uma cópia da façanha. E ponho-me a pensar que se ele a mostrasse em breve ao pagode gaulês, eu abstinha-me talvez de a exibir à Lusitânia. Porquê? Isso queria eu saber. O que sei é que a excitação murchou. Como o esfomeado diante de uma mesa pluralíssima de manjares. A abundância é já um pouco a saciedade. Claro que vou publicar o livro. Mas é claro que já me não apetece tanto. Como o tipo esfomeado sempre acaba por comer, mesmo diante da fartura que naturalmente enjoa um pouco e antecipa um certo sabor a indigestão.
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Ontem esteve aí o Carlos Moura, chegado um pouco tarde às artes e às letras. E quer ele que eu lhe componha umas legendas poético-prosaicas para uns arranjos muito giros de tinta em manchas de esbatidos. Mas é curioso que um pedido de coisas de arte estraga-lhes logo a arte que deviam ter. Não assim um pedido de textos ensaísticos. A arte é uma dádiva, não é resultado de um requerimento. Acaso se pode pedir a alguém que ame ou se comova ou ache graça? Mas concebe-se que se peça diga coisas sobre o amor, a comoção ou as piadas. E aqui estou eu entalado entre a solicitação do artista e a recusa do meu talento que escoicinha cheio de raiva. Poderei amansá-lo? Poderá ele ser gentil comigo? Estarão as musas, mesmo pedestres, em disposição de me enviarem o influxo? Que coisa mais esquiva a diabólica arte. Não há solicitação que a demova, ao menos comigo. Porque é só quando ela muito bem entende. Deve haver processos machos para domar esta fêmea arisca. Não os sei.
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Mas esquecia-me. Na livraria Barata comprei o Dicionário de Camilo organizado pelo Alexandre Cabral. Camilo está na berra, o pobre do Eça foi mandado para o canto da celebridade. Aliás, e em todo o caso, este Dicionário faz pendant com outro, de Eça, organizado pelo Campos Matos. Da qualidade do Camilo não curo. É grande, pois que remédio. Mas há um pormenor à margem de tudo isso e que é este: foi Camilo um «trágico» ou um «humorista»? Magna questão. Transposta para o Eça, dava isto: foi ele um melancólico ou um homem divertido? Não é uma questãozinha estupidazinha? Ainda há dias uma senhora que é camilatra (que latra Camilo) e que a entrevistadora (sisuda ou alegremente) adornava de «formidável inteligência», dizia que o quê? o Camilo trágico? Que coisa divertida. Era um grande cómico! Um tipo cheio de laracha e de gozo dos palermas. Imaginamos nós acaso que ele alojou uma bala no miolo por desespero, tragédia em cinco actos, de alma cabisbunda? O que ele se deve ter divertido com a nossa ilusão. Porque não foi nada disso! Ele foi mas é um grande gozador. A bala que lhe penetrou o último andar ia cheia de riso! Aquilo foi uma grande partida que ele nos pregou. Porque ele era, intrinsecamente, profundamente, desde a intestineira, um impagável gozador. Aliás, o seu exemplo pegou. O Antero, logo a seguir, disse com o seu travesseiro: – Vou pregar uma partida à tragédia lusitana. E meteu também o seu balásio, mas agora via bucal, para se desenfastiar e divertir.
Agora a sério. Esta questão de se ser alegre ou triste, de se optar pela exterioridade cómica ou trágica, não tem que ver por força com o que se é, mas com o que se pretende parecer ou se escolhe para o que devemos ser para os outros. Todo o riso espectacular e mesmo o discreto é normalmente a expressão protocolar de uma grande amargura ou melancolia. O contrário do riso não é a amargura, que é só o seu reverso ou a outra sua face. O contrário do riso – e da amargura – é talvez apenas a serenidade. 

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