domingo, 3 de fevereiro de 2013

A IMPORTÂNCIA DOS PEQUENOS GESTOS

A Feira do Fumeiro de Montalegre tem cada vez mais devotos. Aquilo parece uma peregrinação a Meca. Salvo seja, que os muçulmanos não comem toucinho. Não comem eles, comemos nós. Eu e mais cinco, harmonicamente divididos pelos dois sexos e três carros.
Dado que os restaurantes de Montalegre, com razão ou sem ela, têm fama de, em dias de enchente, servirem mal e caro, desviei os meus convidados para a «Casa do Pedro», em Vilarinho Seco.
Começávamos nós a subir os Cornos das Alturas, começou a nevar. A minha companheira torceu o nariz:
– Não iremos ficar bloqueados?
Olhei o céu. As nuvens iam altas e leves. Via-se bem que estavam de passagem.
– Não te preocupes. Isto não é nada. Bota lá para Vilarinho Seco.
Chegámos já com a mesa posta. Vieram as entradas, veio o vinho, veio a sopa, veio o cozido à barrosã, veio a sobremesa. Tudo digno de bispos e réis, como costuma dizer um galego meu amigo de longa data e apreciador da boa mesa. O Pedro nunca me desiludiu. Viva o Pedro!
Findo o repasto, que melhor ficaria chamar-lhe banquete, fomos brindados com um cafezinho a preceito e respectivo bagaço de alambique próprio. Saímos de Vilarinho Seco aptos a escalar o Larouco de neve coroado.
Custou-nos a chegar a Montalegre. Não por causa da neve, mas por causa do trânsito. Pior foi descobrir sítio onde estacionar. Majores pennas nido. A Vila começa a ter mais olhos do que barriga. Por fim lá conseguimos e, sob o efeito do chicote do vento galego nas orelhas, corremos para a feira, este ano em recinto novo. Mas os portões, apesar de largos, não davam vazão à turbamulta. Aquilo parecia um macaréu de rio em luta com a preia-mar. Comecei a ouvir um paso doble de muitos olés. Meti ombros à contracorrente e fui desaguar num amplo e airosa átrio. Achei bonito, sim senhor. Nem o pórtico do templo de Salomão.
Sobre um estrado, a Música de Parafita puxava pelos metais. Mas o ambiente não lhe era propício. A boa música exige silêncio. E do interior do pavilhão vinha um ingranzéu de ter lá parido a galega.
Era a segunda vez que ouvia a Música de Parafita neste princípio de ano. A primeira foi no pretérito dia sete do corrente, festa de aniversário, para a qual os meus amigos parafitenses, a quem saúdo afectuosamente, nunca se esquecem de me convidar. «Às 11 horas, missa solene» – dizia o programa. Ia a contar com ela na capela da aldeia. Afinal era na ermida de S. Romão.
Para quem não saiba, como eu não sabia, o S. Romão é um templozinho de linhas helénicas, sobranceiro a Parafita, a uns duzentos metros a norte do povoado, no sentido da serra. Dado que as pernas já me não ajudam muito, e aquilo sobe que tem diabo, pelo menos assim me pareceu, não cheguei a tempo de receber a bênção do celebrante, o meu bom e ilustre amigo Reverendo Padre Manuel Alves, arcipreste de Valpaços. Mas muito a tempo de assistir a um espectáculo inolvidável. Eu vinha a sair do templo, virado a sul, e deparei com a Música alinhada à minha frente, o espelho da albufeira dos Pisões ao fundo, a olímpica silhueta da Serra das Alturas do outro lado e, por cima, a toda a largura do horizonte, um céu limpo de nuvens. Simplesmente arrebatador. A um sinal do maestro, a música arrancou. Os acordes foram subindo, ganhando amplitude, enchendo a vastidão do espaço. Até os pássaros se calaram, a ouvir. Até as lágrimas me vieram aos olhos.
Para a Música de Parafita, desejara eu sempre um anfiteatro daqueles. Uma prega da montanha por palco e a imensidão do firmamento por cúpula. Confinada num átrio, por maior que ele seja, perde qualidade. Não obstante, aguentei a pé firme, aplaudi com mão diligente. Neste ponto tocou o telemóvel. Era a cara-metade a reclamar a minha presença do outro lado do pavilhão.
Subi mais uns degraus, mergulhei num mar de gente. Num mar, repito, e explico porquê. O pavilhão é tão grande, a gente era tanta, a vozearia tão intensa e difusa, que lembrava o incessante marulhar das ondas na praia. Fui avançando, na esperança de encontrar uma sereia que desse consistência à metáfora. Nisto vem de lá uma senhora de braços abertos e sorriso largo:
– Posso dar-lhe um abraço?
– Até um beijo, se nisso tiver gosto.
– Também diz bem.
Beijou-me na face. Correspondi.
– Você não me conhece mas eu vou dizer-lhe quem sou. Lembra-se de me ter dado uma boleia entre Morgade e Carvalhais?
– De carro?
– A cavalo. Eu ia com a minha falecida mãe, ambas carregadas, ela com um saco de batatas à cabeça, eu com uma cestinha de ovos no braço. Mas eu já não podia com as pernas. Nisto aparece você escachapernado num cavalo branco. Parece-me que ia ao vinho a casa do Rego.
– Sim. Lembro-me de ir algumas vezes ao vinho a casa do Rego.
– E não se lembra de me ter dado boleia?
– Isso não.
– Pois foi. Disse para a minha mãe: «Bote-me para cá o saco.» «Leva-me antes a menina.» «Bote para cá tudo. O saco à frente, a menina atrás». A minha mãe passou-lhe o saco. Você ajeitou-o à sua frente e disse: «Agora a menina.» Minha mãe içou-me para a garupa do cavalo. «Agarra-te bem mim, não tenhas medo.» «Está bem» – respondi eu toda concha. Há que anos isso vai. Você devia ter para aí uns quinze, eu sete. Nunca mais me esqueci. Depois você desapareceu, acho que foi estudar, e eu fui para a América. Aguardei uma vida inteira por este abraço.
– Foi pena não ter vindo mais cedo.
– Não calhou. Era só isto que lhe queria dizer. Aquela sua gentileza, cativou-me para o resto da vida. Adeus.
A senhora afastou-se e eu fiquei a pensar na importância dos pequenos gestos…
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 78 e ss.)

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