quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

27 – Fevereiro (terça). [1990]

Abala-me sempre de emoção encantada ouvir uma balada de Coimbra (ou um «fado», como se diz e como não gosto, por ter para mim uma ressonância carrasqueira – de «carrascão»). Mas nada há que mais me arrepie e confranja do que ouvir falar de Coimbra e dos «tempos da mocidade» e do mais que constitui a retórica coimbrã. Aliás, para se medir a distância que vai de uma coisa a outra, basta reparar na letra de tais «fados». Porque de um modo geral é detestável. As pessoas que me sabem doente de Coimbra incitam-me às vezes a assistir a espectáculos de antigos estudantes, saudosas elas – as que assistem de uma realidade que é um irreal de que não fazem ideia. E eu às vezes lá vou. Ouço comovido as guitarradas e um ou outro cantor – de um modo geral mau. Porque a balada de Coimbra é como o violino – comovente ou detestável se bem ou mal cantado ou tocado. Óptimo. Mas que queria eu dizer? O que eu queria dizer é que da emoção sentida ao dizê-la vai a distância enorme da arte. É o caso vulgar de ouvirmos dizer «a minha vida dava um romance». Como se um romance começasse na «vida» seja de quem for. Porque começa justamente não no romance que dava, mas no romance que for. Falar (ou escrever) sobre uma emoção não é dala, se a arte a não transfigurar no irreal que ela é. O Almada Negreiros talvez tivesse razão em falar dos «palermas de Coimbra» – ressalvando que palerma era ele também. Um coimbrão investe-se normalmente de uma legenda que é do encantamento de quem por lá passou, mas esquece-se de que tal legenda tem de ser recriada na sua irrealidade para que os outros a aceitem – mesmo os que a viveram. Coimbra é a máxima sublimação de um passado, porque esse passado é o da juventude. Mas um passado não existe senão quando deixou de existir – não quando existiu, justamente porque nunca existiu. Se uma fada nos reconstituísse esse passado tal como existiu, sofríamos uma tremenda decepção. Para que a não sofrêssemos seria necessário realizar-se o paradoxo de existir como existiu e como agora o transfiguramos, com o que foi e o que é no nosso encantamento de agora. Ora quem fala habitualmente de Coimbra em termos saudosos, fala dela como foi e não como a transfiguramos no que não podia nunca ser. E então o que sobra disso tudo é um ridículo execrável e insuportável.
Lembrou-me isto ao ouvir a gravação de um desses espectáculos evocativos que me ofereceu o meu amigo Costa Santos (Tito), que foi – e é – um belo cantor da balada coimbrã. Enquanto se ouvem as guitarradas e (alguns) fados, a música emociona-me. Mas quando o apresentador se põe a palrar do Penedo e do luar e da Lapa e do Mondego e todo o mais instrumental da clássica evocação, corto-lhe o pio para me não nausear e apagar a emoção que me tomou.
Senhores promotores de uma reinvenção do passado: cantem e guitarreiem, mas calem-se no mais, porque esse mais não é para se dizer em linguagem pedestre, mas na da arte, de que vocês não fazem ideia o que seja.
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Há dias o semanário O Jornal trazia o retrato do Carlos de Oliveira numa fila de outros retratos já não sei porque enfileirados e dizia dele que era hoje um autor «quase esquecido». Imagine-se. Ele que foi o senhor da praça literária. Governava o mundo das letras do seu poiso no Montecarlo e daí decretava o génio e mediocridade de quem ousasse literatar. E os seus missi dominici partiam para a literatura a executar os seus decretos. O P. dizia-o Mestre (também disse que O Barranco de Cegos do Redol era o maior romance do século xx), o G. C. executou o Palma-Ferreira por ter posto em causa a genialidade do nosso Carlos, o B. B. disse ao Serafim Ferreira que uma das razões por que me detesta era eu duvidar do génio oliva, o P. C. sempre que o génio se produzia em escasso romance, em poema gotícula ou texto sumário, desfazia-se em estudos mais extensos do que a obra em causa (mas nunca mais escreveu uma linha sobre o gigante do Montecarlo, depois que a morte o subtraiu). E agora vem o Jornal, tão docemente inclinado ao progressismo, anunciar-nos que o génio era hoje um homem quase esquecido. Jamais, portanto, o P. o chamará seu Mestre, jamais o G. esgalhará possíveis Palmas-Ferreira, jamais o assomadiço B. B. dirá como disse e repetiu, que Uma Abelha na Chuva era o seu «livro de cabeceira». Aliás, esta história de livros de cabeceira faz-me pensar. Porque um livro de cabeceira tem por força de ser um livro de cabeceira (de sono). Pois se é para ficar excitado, o melhor é lê-lo fora da cama. Ou se não é para estar desperto, melhor é ler o dicionário.
Mas o «esquecimento» de C. Oliveira. Ele não está esquecido, está é naturalmente mais reduzido ao seu tamanho. E esse, se se pretende que seja de gigante, corre o risco do famoso Ceausescu que era o «gigante dos Cárpatos». Não, o Carlos de Oliveira, como romancista, não nos entusiasma já muito, embora tenha uma escrita de preço. Mas os versos são bons, jeitosos, tipo «bibelot», que fica sempre bem na nossa emoção leve e (um pouco) distraída. É pouco? É o bastante para a gente o reler em momentos de um discreto apetite poético. Eu, pelo menos, releio-o com suficiente prazer, apesar da sua mania (por erro de escola) de os polir – como à prosa – com polirina para brilharem um pouco mais do que há neles de razão para isso. E não me insultem, por favor. Insultem O Jornal, que apesar de ser «dos nossos», disse essa coisa nefanda de que era um autor «quase esquecido»…
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E a propósito de o P. C. não ter nunca mais escrito uma palavra sobre o Oliveira: é o seu tique. Na verdade, ele nunca escreveu nada sobre autores já defuntos (exceptuando Pessoa, por se aguentar vivo com a sua modernidade). Assim jamais gastou uma linha sobre Camões, Gil Vicente, Garrett, Camilo, Eça, etc. Estão mortos. Não é gente que ele encontre na sua filosofia do imediato, do presente. É o caso. E já lho disse.
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Daniel Ortega, o Fidel ditador em ponto ainda mais pequeno da Nicarágua contra todas as sondagens prévias, perdeu estrondosamente as eleições. Menos um. Falta o dito Fidel. E a China – que não é um país, mas um continente. Óptimo. Mas à noite na TV Miguel Urbano Rodrigues, pessoa discreta, aliás, inteligente e culta, veio dizer que o desastre se deveu à pressão económica dos Estados Unidos, não é verdade? Só que o patarata do locutor não teve a ideia fácil de perguntar a Miguel Urbano como é que os Estados Unidos fizeram pressão sobre todos os estados de Leste para caírem de cambulhada os seus partidos comunistas. Ou essa pressão não pressionou até lá? Miguel Urbano Rodrigues imaginará que os seus compatriotas são atrasados mentais? Ou tudo isto é ainda efeito do desaforo com que os seus camaradas nos fazem de toupeiras, negando que o sol brilha? Arre, que é de mais. (Desculpem, mas a paciência está muito cara.)
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O Cesariny disse que o Pascoaes é o maior poeta do século. Gracinha surrealista que já não se usa. O Pascoaes? Que ideia. Arrasta muito os pés da poesia.
VF 

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