terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

19 – Fevereiro (segunda) [1990]

O romance é uma espécie em vias de extinção. E isso uma profecia generalizada mas sempre de execução sempre em adiamento, com protestos exaltados dos que se sentem em ameaça ao seu bife. Creio que falar disso é mesmo um sinal visível de reacionarismo. Em Maio de 88, num congresso internacional havido em Queluz, eu disse que o romance está ameaçado pela literatura de consumo e é de realização difícil para se aguentar entre a qualidade e a quantidade, entre o que o dignifica e a necessidade de ser vendido. Cardoso Pires ironizou dizendo que o que se pretendia era um elitismo muito alargado. E a imprensa, sempre adorável comigo, disse logo qualquer coisa que era mais ou menos assim: toma lá, que é para saberes. Digamos que o romance está em extinção. Na realidade está hoje tudo em extinção. Mas é só o romance que me interessa, porque é problema em que estou metido. Já talvez tenha contado o que se passa hoje na América no que importa ao fabrico de romances. É uma indústria como a do sabão ou do papel higiénico. Há editoras com os seus funcionários escritores que têm o seu horário de trabalho e despacham em prosa romanesca as encomendas do patrão. O funcionário entra no seu gabinete e cumpre a tarefa encomendada. E há vários outros funcionáros como ele. As sondagens do mercado dizem que o que está a dar é, por exemplo, o romance sobre a homossexualidade, perversão de menores, conflitos rácicos, etc. E o patrão distribui o serviço: toma lá tu o tema da panasquice, toma tu o das lolitas, toma tu o do futuro da negritude. E o funcionário entra às nove e sai às cinco com uma hora para almoço, trabalhando no tema encomendado até ir para casa. Faz-se o livro, vende-se o livro, lê-se o livro e deita-se fora. Que é que a literatura tem a ver com tudo isto?
Há um problema que se insere na degradação da arte mas que já não tem que ver propriamente com a perda de qualidade e é a reprodução industrializada da obra plástica. A reprodução em sene esbate-lhe não a qualidade elitista, mas a concentração nela de qualidades enquanto arte. Como um pai de muitos filhos, o amor dissolve-se neles todos. E o facto de um Vasarellì defender essa desmultiplicação esclarece o que há de degradação no facto de ele se insurgir contra a contemplação de uma obra. Porque ela não é para contemplar, mas para ver e esquecer. O romance vai morrer e é a morte de toda a arte que se visa ou reconhece neste trabalho de sapa. Destruir. Deitar fora. Desconstruir. Tudo quer dizer o mesmo. E esse mesmo que quer dizer é a liquidação do homem. Que é que isso tem de diferente da ameaça da «engenharia genética»? Salvar o homem. Salvaguardar-lhe a sua dignidade e o seu milagre. É o slogan que em breve teremos necessidade de impor.
Mas estou a cair em drama puxado à lágrima. Fico por aqui para não ir chorar para a casa de banho e deixá-la talvez com mau cheiro.
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Aproveita o que te sabe bem, enquanto os médicos não descobrem que te faz mal. Ou espera com paciência até dizerem que afinal faz mesmo muito bem.
VF 

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