sábado, 23 de fevereiro de 2013

23 – Fevereiro (sexta). [1990]

Viemos enfim a Fontanelas. Ou antes, vim eu. Porque a Regina, em viagens furtivas de vir e ir com a Brígida, tem cá vindo de vez em quando. Mas tivemos de esperar que o sol desse o seu aval porque um tipo que me andava a arranjar a antena e a deixou na mesma, escavacou com o seu peso terrestre não sei que telha e a chuva aproveitou logo para se infiltrar cá dentro a ver como era e alastrar de bolor e negritude uma parede da sala. E ao mau exemplo da parede, toda a casa mais ou menos aproveitou para dizer que quando o bolor nasce é para todos. De modo que a sala, os quartos, o escritório e a cozinha estavam a fazer da casa toda uma descoberta arqueológica. Houve pois que reconduzi-la a habitação civilizada a golpes de sol e vassoura. Porque uma casa é como um corpo humano a que se destina e um breve descuido entra logo na barbárie. De modo que cá viemos. Havia indícios de que a Primavera vinha aí. Mas nem um pássaro a colaborar. Têm o seu relógio cósmico e não há sol que os trapaceie. Já as galinhas são mais dotadas de estupidez. A minha tia Quina contava-me que na sua infância houvera um eclipse total do sol e que na suposição de que era noite, a malta galinácea encaminhou-se toda para o poleiro. Mas quando viram que era engano, voltaram a sair e a ciscar o seu alimento. Devo aliás dizer que a mioleira das galinhas não é assim tão deficitária como isso. Na aldeia às vezes entretinha-me a pôr-lhes à prova o intelecto. Lançava-lhes assim do alto grãos de milho sobre o cimento do jardim. E como os grãos naturalmente saltitavam, elas seguiam-lhes o movimento com a cabeça para cima e para baixo até que os grãos se imobilizassem. E então comiam-nos. Mas repetida a experiência várias vezes, elas ficavam de cabeça imóvel à espera de que o grão ficasse quieto. E então bicavam-no.
Mas dizia eu – de pássaros nem um pio. Que estranha coisa assim a Natureza deserta, com alguma verdura já a dizer-lhe a alegria. E imagino assim o aparecimento da Terra, sem um ser vivo a tomá-la mais viva. Um instante Deus deve olhá-la com inquietação e deslumbramento, no silêncio da sua eternidade. Em todo o caso aqui e além desponta um ladrar inconsequente de cão aí natural. Mas um cão não usa relógio e deve ter por essa invenção um desprezo altaneiro. Assim não tem horário e ladra de dia ou de noite. E mesmo no fornicar creio que não tem um calendário muito rigoroso. Foi talvez o mau hábito em que o pôs o homem, seu parceiro.
De todo o modo é belo ver de novo a Natureza no seu estado livre ou pouco domesticado. Vejo-a de novo do meu poiso no sofá do escritório, com a claridade que esmorece entre os pinheiros imóveis. E uma paz desce doce dela sobre mim. E estranhamente sinto que ela me não esperava para ser minha nessa espera. Ou que de qualquer modo a não mereço.
VF 

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