domingo, 10 de fevereiro de 2013

10 – Fevereiro (sexta) [1990]

É verdadeiramente espantoso que se discuta ainda tanto sobre o que seja a verdade. Quando a ciência tinha pacto com Deus, partilhando a eternidade, e existia ainda essa coisa mirífica da «objectividade», havia as verdades ditas objectivas, acontecidas fora de nós, embora estivessem dentro, e daí lavávamos as mãos. E havia as outras, as ditas subjectivas, que podiam ser mais ou menos o que se quisesse porque não tinham importância nenhuma. Bom. Acontecia, porém, que estas tais verdades da privacidade de cada um, como o comportamento do seu pâncreas ou da sua tripa, abrangiam a quase totalidade das verdades e eram as verdadeiramente decisivas para a vida de cada um. Arredada para o lado a questão de a Ciência ter caído em maus costumes, deixando-se preverter pela inconstância e volubilidade da juventude estouvada e ser hoje tão falível como a existência de Deus, seu parceiro em firmeza, nós temos assim que o problema da verdade é o de todo o nosso destino humano – que vai da crença à piada de uma anedota e ao amor de um canastrão. Disse algures – devo ter dito – que há em cada homem um núcleo indizível, um foco de irradiação, um ponto cego donde procede ou onde se situa o que genericamente consideramos a sua pessoa. Há assim pessoas amáveis, iracundas, serenas, excitáveis, ponderadas, insensatas, etc. E é essa nossa pessoa ou nosso ser, ou se preferimos, esse ser que para nós escolhemos e com o qual nos identificamos, é esse quid especial que nos define e identifica, é isso que pela vida fora e ao acaso dos ventos que por nós passam na forma de pessoas que nos criaram ou que encontrámos, dos livros ou instrução que nos calhou, dos mil acidentes enfim que constituíram a nossa vida, é isso que posto em contacto com tais acasos vai definindo para si um equilíbrio interior em que esses mil elementos se organizam para formarem um todo coerente com o que aí se assinala ou daí se expulsa e define o que há-de ser ou não uma verdade. Assim, como o tal rei dizia «o Estado sou eu» cada um de nós dirá, se for honesto e atento, «a verdade sou eu». Tal equilíbrio não é definitivo, ou seja, não se constitui de uma vez para sempre – como não é para sempre que tal obra de arte nos agrada ou tal anedota tem graça. Mas eu suponho que em todos nós há um arquétipo, que é afinal o tal núcleo central de nós, o qual vai tacteando ao longo da vida a correspondência segura do que é com o que vai encontrando. E pode assim acontecer que essa coincidência se não realize até à morte e o que realmente a define irá a sepultar com ela. E o que às vezes queremos dizer ao afirmar que tal ou tal indivíduo nasceu no seu tempo. Como se realizaria o arquétipo de um Dostoievski no tempo de Péricles? O de Napoleão no (Interrompido).

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