domingo, 3 de fevereiro de 2013

3 – Fevereiro (sexta) [1990]

Absorvido como estive com o romance, não vim para aqui despejar o que se me amontoou na mente e no sistema nervoso de problemas e excitações desenvolvidas no estoiro em série dos comunismos de Leste. Um foguetório. Não vou agora, já tarde, recuperar o que aliás fui evaporando em considerações para dentro ou para o exterior do telefone ou da conversa ao vivo com amigos e conhecidos. Mas há uma coisa, que nem sei se é coisa ainda por evaporar, e é o reflexo do arraial de lá na festa política de cá. Não, não se trata do PC, organização tão defunta como a dos anacoretas ou da União Nacional. Trata-se dos políticos ainda vivos e que se proclamam aos berros de esquerda – para se demarcarem dos seus irmãos também de esquerda, segundo os da direita, e da direita segundo os da esquerda. (Mas permitam-me um intervalo. É que ouço na rádio uma doce música que me transporta para donde a esquerda e a direita é uma ternura de infantismo e idiotice.) Bom. Mas antes de mais, que é hoje isso de direita e de esquerda? A esquerda rosna, de cenho baixo como viseira para o combate, que confundir ou pôr em causa a distinção é de si um sinal visível como um escarro de que se é precisamente da direita. Há uma carga emocional no que um dia chamei «palavras mágicas» e atravessá-la é ficar esfarrapado na nossa farófia de ter o que se chamava na pré-história dignidade ou «carácter». Mas então em que é que hoje é mais de esquerda o trabalhador do que o que se esfola para «criar riqueza»? Que tem este de semelhante com o gordo proprietário ou capitalista cheio de barriga e anéis? Demonstrado que ficou ser inoperável o sistema comunista (nacionalização, centralismo democrático, etc. etc.), que raio é que fica em resto para a gente distinguir o que é a esquerda? Em que é que é hoje mais de esquerda o «socialismo democrático» (que meteu o socialismo na «gaveta», segundo Soares, ou no «jazigo», segundo Lucas Pires) da pura «social-democracia» (que nunca chegou a fazer o mesmo)? Teremos de recorrer aos tempos de antes do dilúvio, quando Salazar ainda não tinha morrido afogado, para distinguirmos quem era contra ele e quem era assim assim? Aliás, o Partido Socialista, além de ter dado abrigo a foragidos do salazarismo, acolheu ainda antigos comunistas mal curados e que em ocasiões favoráveis sofrem o ataque da antiga maleita. Quando aqui há meses apresentei nos Jerónimos um livro sobre África do embaixador do Brasil, o meu velho amigo Alberto da Costa e Silva, pude defender a Europa contra a sua progressiva subalternização, como um pouco se fazia no livro apresentado. E dizia eu que a Europa é ainda a capital do Mundo. Ela exportou, com efeito, substância cinzenta para a América, tecnologia para o Japão e até matéria-prima «avariada» como o marxismo para a China (onde, aliás, ainda não tinha acontecido o crime hediondo da Praça de Tienanmen). Estava presente certo intelectual socialista que me deu, antes da parlenga, um aperto mole de mão, mas que depois dela, nem mole nem rijo. Estava ali ao pé. Absteve-se. O que não fez ninguém conhecido, também ali nas imediações.
Ponto final. Vou ouvir a música do rádio. É mais bela do que isso. E a memória do que disso nela fica é a de uma nuvem que há milénios passou…
*
Fui com a Regina dar uma volta pelo Campo Grande após o almoço. Fomos de carro (que a minha perna e cabeça não são agora muito compreensivas), deixámo-lo ao fundo da avenida da Igreja e deambulámos até a um banco onde sentei o meu cambalear. E no regresso dei conta de que brilhava um sol novo entre a verdura do parque. E senti que a sua luminosidade, já esquecida no negrume do Inverno, era bela e doce como a minha obscura melancolia. E houve silêncio em mim enquanto eu e a Regina íamos conversando. Sobre quê? Sobre tudo o que não recordo agora, enquanto vou relembrando essa luz ainda nova no exacto instante em que o mistério da vida a criou… 

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