domingo, 24 de fevereiro de 2013

24 – Fevereiro (sábado). [1990]

Enganei-me. Afinal pela manhã houve pássaros. Discretos, tímidos, um pouco parvinhos, lá cantavam aqui e além o seu pio desconcertado. Devem usar ainda daqueles relógios da minha infância marca Roscoff, que eram gordos como os abades do seu tempo e lembravam no trabalhar uma locomotiva. Hoje os pássaros usam relógios electrónicos. E por isso a maioria não compareceu. Está aliás um lindo tempo e foram parvos no rigorismo dos seus cronómetros. Amanhã começa o Carnaval e já talvez não tenham sido tão parvos como isso para se não acanalharem com as carnavalices. Em todo o caso acendemos o fogão para promovermos a casa de sepulcro a mansão humana. Cá estou a aquecer os meus pés mortais enquanto garatujo estas minhoquices. Mas aquela moedeira histérica na barriga voltou a chatear-me, apesar do saco de medicamentos com que tento dissuadi-la. Vai este inferno tirar-me o resto dos meus dias? Não quero maçar mais o destino com o requerimento de outro romance. Acabou. Mas ao menos, que diabo, um pouco de sossego neste bocado de carne para ir sendo humano. E isso não é talvez de ser demais para o estupor do destino me obsequiar.
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Nunca mais. Quando este dobre de sinos nos dá um rebate na alma, a nossa imaginação, de economia proletária, o que nos lembra é que não mais veremos os amigos, os familiares, a nossa casa e assim. Mas o nunca mais é infinito. Nunca mais veremos esses amigos e o resto, mas ainda o que será a História amanhã, o que será o país, a sua possível dissolução, a extinção das espécies vegetais e animais, a extinção da espécie humana, o planeta morto, o fim do sistema solar com o apagamento do sol, a extinção do Universo, a infinidade dos tempos depois de morto o Universo, o silêncio interminável do vazio. O nunca mais estabelece assim uma desproporção inimaginável entre o simples facto da tua morte e o infinito que lhe responde. Nunca mais. É o vazio eterno que corresponde a uma vida que findou…
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E ao almoço apareceram os Mários Braga que a Regina desafiara ontem para o repasto de hoje. Habitualmente vamos com eles ao Café do Zé. Mas desta vez opuseram-se. Tinham carro novo e quiseram exibi-lo à nossa estupefacção. Andava. Mas do lado de trás, que era o nosso sítio, os caroços da estrada manifestavam-se excessivamente. E como ambos eles são pouco evoluídos para amarem a barulheira do Café do Zé e a força e abundância dos seus pratos de especialidade, como o cozido em quantidade para pesos-pesados e a fartura dos molhos dos bifes e bacalhau, levaram-nos ao Curral dos Caprinos, que é um restaurante na Várzea de Sintra. E nós deixámo-nos ir. É uma casa «típica», no género do tecto e paredes adornadas excessivamente de braços de alhos, instrumentos domésticos entre eles, muitos cornos. Comeu-se. Bebeu-se. Pagou-se. A Regina não se mostrou compreensiva, mesmo para os adornos, entre eles as cornaduras. E concluiu, no fim da factura, que o mais elevado de tudo eram os preços. Como ela é que é a ministra das Finanças e os dedos me não ficaram queimados, não achei.
E agora vou desbastar a montanha de jornais da semana para compor a digestão. Ou descompor.
VF 

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