segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

18 – Fevereiro (sexta) [1990]

Como em todos os domingos, há o almoço patriarcal. E como antes de todos eles, o Gilo põe a questão sobre onde vamos almoçar. Hoje fomos à Pontinha, que fica para lá de Carnide, perto de Benfica. É uma tasca aparelhada para o não parecer, num chão mais ou menos térreo com um amontoado de objectos que poderiam servir para um museu regional, dependurados do tecto e das paredes. Cangas de bois do Minho, instrumentos de espadelar o linho, ancinhos, rocas de fiar, chocalhos e o mais que não lembro ou poderia inventar como já terei inventado e se reporta igualmente a um mundo antigo de ser português. A Regina exaspera-se com este folclorismo que a sua desconfiança relaciona logo a uma possível «exploração». Mas eu gosto. Não pelo aparato, mas pela comezaina que é normalmente a condizer. E com efeito. Logo como aperitivo há uma abundância carniceira com morcela, perna de porco, gorduras várias do mesmo simpático bicho. É a minha infância que volta e com um pouco de apetite leva tudo a eito. Depois vem o fundamental almoço, que eu insisto em que se coordene com o aperitivo. Detesto o peixe, a menos que disfarce bem o que deve saber em cru. Como suponho já ter dito, na minha aldeia é-se carnívoro e convoca-se a justifica-lo a opinião de Cristo. Porque ele encarnou e não empeixou. O peixe da minha infância era a sardinha salgada ou já «ardida», vinda em caixotes dos confins do mar ou o infeliz do bacalhau já espalmado em «peixotes». E quanto a peixe temos falado. Restava pois a carne de porco da salgadeira porque a vaca era quase tão sagrada como a indú. A minha ementa ideal era assim muito encurtada: bacalhau, sardinha e porco. E quanto a prato propriamente dito, feijão com arroz ao almoço e batatas ao jantar (alcunhados então respectivamente de jantar e ceia). Fomos à Pontinha. Fui animal carnívoro até à alma. E estava aparelhado hoje para beber. E bebi. Mas hoje os dois ascensores do prédio fizeram fim-de-semana. De modo que tive de subir à pata os seis andares da minha petulância. Cá cheguei ao alto da megalomania. E reparo agora, depois de uma sesta, que já estava quase disponível para comer outro almoço…
VF 

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