quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

14 – Fevereiro (sexta) [1990]

No domingo fui ao Porto. Havia que cumprir um preceito de amizade com a Fernanda Irene que fazia o seu doutoramento na segunda. E apanhar na onda outras amizades a cumprir também como a da Mariberta, do Costa Marques e do Resende. Eu ia receoso deste estupor do irmão corpo que deu agora em histérico, justamente na idade de ser sensato e sossegado. Mas enfim, não se portou muito mal. Também lhe dei distracção para o distrair e comer e beber para lhe suavizar as birras e torná-lo mais compreensivo. O doutoramento foi uma festa bonita. A tese – que é um calhamaço para aqui à espera de o desbastar todo, mas que já lera em parte e recomecei desde a primeira folha – é uma extensão da linguística até à literatura (e aí entro eu também com o Para Sempre). E da linguística os motivos são os dícticos, ou seja os elementos que «mostram» ou indicam uma presença («este», «aqui», «agora») centrada no locutor. E a passagem à literatura faz-se sobretudo pelo «4empo». Óptimo. Estava com «boa casa» a assistir. E a doutoranda foi exuberante. Eu disse-lhe no fim que o seu lugar era no parlamento ou comício, porque ela tem a veia da Passionária. A Mariberta, sempre boa rapariga e despachada, apesar de o seu pezinho começar a recusar-se a entrar na dança. E o Franklim a ceder um pouco às exigências da rabugem que a idade lhe vai exigindo. Alimentaram-me com um almoço que a Mariberta cozinhou e eu classifiquei com 20 valores – e sem «cunhas».Quanto ao Costa Marques – como me impressionou. Magríssimo, orelhas pendentes, rosto afuselado e já um pouco translúcido de matéria ectoplásmica. Queixou-se-me das negas da memória que lhe abre hiatos no discurso mental. Mesmo a ver a TV há interrupções dessa energia mental. E eu que me ocupei dessas desgraças no Em Nome da Terra, a sair talvez em Maio, tive para toda a degradação da velhice um rápido comentário interior, dizendo apenas que é uma merda. Conheci também pessoalmente uma mocinha que me escreve às vezes chamada Magda Laires, adoradora da literatura ou seja do imaginário que ela fixou nos meus livros. Lá lhe dei os meus conselhos de avô que ela é mais nova do que a Rita. E levámo-la connosco na visita ao Resende – o que a deslumbrou. Resende, sempre igual a si mesmo na sua forma adorável de um eterno riso juvenil e de uma arte que é a melhor que nos coube no nosso tempo português. Lá estava com telas enormes, cheias agora de uma claridade de quem só agora nascesse para a vida. Brancos amarelos azuis numa larga irradiação para lá dos limites do que poderia reduzi-los ou fechá-los numa imediata realidade, no seu peso e densidade terrestre. Respira-se nelas largamente e o imaginário abre-nos à liberdade com a libertação daquilo mesmo que por vezes é identificável. Grande pintor. Maravilhoso artista que soube promover ao intangível o real que não esqueceu. E à noite houve um grande jantar de confraternização e congratulação dos colegas da Fernanda Irene. Fiquei ao pé do Óscar Lopes. Dissemos coisas transcendentes. Suponho que a grande diferença de outrora para hoje se chama Gorbatchev. Ou chamar-se-á apenas velhice.
E é tudo. Conversei o meu tanto também com o professor Pottier que veio de Paris argumentar a tese. Mas já me esquecido do que dissemos. Tomei o rápido no dia seguinte. Almocei no comboio. Estava a Regina e o Lúcio à espera em Santa Apolónia. E finda a festa, o irmão corpo recaiu logo na patifaria. Queria mais. Não há mais. Agora é aguentar. Ele e eu, que também sou gente.
*
Mas deu-se hoje um grande acontecimento e era indecente deixá-lo passar. Que diria a História amanhã se eu o ocultasse e viesse a sabê-lo por portas travessas? Tenho os meus deveres para com o futuro e uma consciência à moda antiga em que estas faltas pesam arrobas. E o acontecimento é este – fui hoje comprar um fato. Estou já a ouvir as gargalhadas do cepticismo a cobrirem-me de dúvida metódica. Ai não acreditam? Então vão à Rua dos Fanqueiros e perguntem. A dos Fanqueiros está cheia de lojas desta farraparia. Corri-as todas. Mas por fim achei. Eu andava nisto há anos. Não acreditam outra vez, é claro. Há anos. Bati primeiro as lojas da avenida da Igreja, que está mais ao pé e tem material em conta. Mas não havia para a minha elegância e o meu garbo. Venha mais tarde, diziam-me, temos aí a chegar novo sortido e vai ter por onde escolher. Mas depois metia-se a chuva, a má disposição para a aventura, a vontade de ir remediando com o meu guarda-roupa e assim se passaram tempos. Hoje que estava sol e voltei do Porto cheio de arremesso, dispus-me a arrancar. Para remediar previamente as contendas domésticas, levei a Regina com o seu conselho responsável. E lá andámos na dos Fanqueiros para baixo e para cima. Vestia um casaco e a Regina dizia – então não se está mesmo a ver que te fica largo? E realmente, observando-me ao espelho sem preconceitos, aquilo parecia um fato de esmola. E então mudávamos de loja e fazia pontaria para outro mais comedido. Apertava bem, cintava bem com um certo donaire. E a Regina dizia – então não estarás mesmo a ver que te fica apertado? E redizia – então não estarás mesmo a ver que te fica apertado? E realmente, observando-me com olho desprevenido ao espelho, aquilo parecia fato de defunto bastante ósseo e metida que lhe fosse uma camisola de agasalho, rebentava os botões. O problema era extremamente difícil porque o número 52 era para a barriga de um abade, que enfim não tenho, e o número 50 era para o vazio de um tísico, que não é bem o meu caso. O leitor que me está a acompanhar quebra já de comoção. Mas a glória é dos obstinados e eu tenho a minha quota-parte de obstinação, ou seja do tão querido e simpático burro. Até que enfim achei um fato à medida. Era um 52, mas costurado com mão somítica, o que lhe deu a medida de 51,5 – que não há no catálogo. Filei-o logo. Havia agora que tirar a prova da calça a ver se acompanhava. Mas a mão somítica de quem a talhou exagerou e na figuração de burro a cilha era apertada. Alarga-se, disse a menina que me queria passar a andaina. E lá ficou para o alargamento. A Regina calou-se, que para isso é que foi comigo. Largou cinco dele como sinal e sexta à tarde lá me irá buscar a fardeta inteira. Esquecia-me de um contra, mas esse é generalizado. É que hoje as calças de origem modesta levam seda (seda?) nas pernas até ao joelho para se não parecerem logo com um trapo de cozinha. E isso dá uma geleira quando se vestem pela manhã. Mas talvez isso tenha o seu benefício e é obrigar-me a encolher-me com o gelo da seda e ficar assim mais conforme com a esbelteza. E agora, fato novo, só para ir bem vestido para o paraíso.
*
Falta agradecer aqui uma coisa ao bom do Luís Amaro. Tem ele um olho feroz para as gralhas de um livro e eu lembrei-me de o propor como revisor do meu novo romance. Foi aceite com alegria. Então ele sugeriu-me a leitura prévia do dactilografado para ir já limpo para a tipografia. Lá mo leu. E que razia. A repetição dos «mas» e dos «eras», as vírgulas amais ou a menos, as maiúsculas e minúsculas – levou tudo uma barrela. E agora até dá gosto. Às vezes o meu granito beirão lã resistia – e deixei ficar. Mas quase toda a sua limpeza era tão premente que o meu granito nem chegava a calcário. E lá fui dizendo que sim, que sim. Só falta agora que algum leitor mais casmurro me diga do livro todo que não. Será uma estupidez não se gostar da minha obra, ó safados. Mas se o inferno existe é para ter os seus inquilinos e não abrir falência. E é para lá que ireis todos vós, ó infelizes, se vos não curvardes à minha omnipotência. E à maneira do Sena dir-vos-ei desde já que se não cairdes de cócoras é porque a Natureza vos fez de substância característica do boi. Disse. Ah, esquecia-me: o Luís Amaro disse que todo o meu livro era uma carta de amor. Gostei. E fiquei a pensar comigo que essa carta a venho escrevendo à Rute (de Apelo da Noite), à Guida (de Cântico Final), à Hélia (de Rápida, a Sombra), à Sabina (de Signo Sinal) e sobretudíssimo à Sandra (de Para Sempre) e à Oriana (de Até ao Fim). Fim.
VF

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