sábado, 16 de fevereiro de 2013

16 – Fevereiro (sexta) [1990]

O meu editor francês Joaquim Vital (que é português…) esteve aqui em Lisboa há dias e durante o jantar falou-me de um livro sobre Malraux publicado por um filho. Mas ele não tinha agora filho algum, disse eu. Filho adoptivo, disse-me ele. Mandou-me o livro. Estou a acabar a leitura. Mas antes de dizer dele o que me parece, explico, depois do que li, a embrulhada da família Malraux. O pai dele, chamado Fernand, casou duas vezes. Do primeiro casamento nasceu o nosso homem, André Malraux. Viúvo, casou segunda vez e deste casamento nasceram os dois meios-irmãos Roland e Claude. Claude foi fuzilado pelos alemães aos 27 anos, solteiro, suponho. Roland morreu num campo de concentração, deixando viúva uma pianista, Madeleine, e um filho Alain – que é o autor do livro de que falo. André era casado com Clara e tinha dela uma filha Florence (Fio para a família e amigos). Separando-se da mulher – que lhe não deu o divórcio – André vive com Josette Clotis de quem tem dois filhos Vincent e Gauthier. Josette morre num desastre ferroviário e André casa (?) com a viúva do irmão Roland – Madeleine – que lhe cria os dois filhos de Josette com o seu, Alain. A família é agora constituída por André, Madeleine, o filho desta e de Roland – Alain – e os dois filhos de André e Josette – Vincent e Gauthier. A vida da nova família é normal, com a prevista perturbação da presença do «génio», reflectida na instabilidade da carreira de Madeleine como pianista. É uma vida de grande fausto, decerto porque os direitos de autor de André devem ser fabulosos. Apartamentos de luxo, viagens, férias fáceis em estâncias de alto coturno e o mais. Um dia um amigo de Vincent oferece-lhe (imagine-se) um carro de alto estilo desportivo para velocidades de vertigem. E numa viagem ao sul da França com o irmão Gauthier e a que Alain não quis ou pôde associar-se, os dois irmãos estampam-se e morrem no desastre. Malraux sofre um choque violento, mas no dia seguinte ao do enterro, que acompanhou, apareceu numa reunião oficial do Governo, a que pertencia. Espanto regelado de todos. Mas daí em diante a sua vida transformou-se e a dissenção com Madeleine agravou-se. Aliás as suas relações com a filha, a Fio (como com todos os amigos) foram sempre difíceis e mal se viam durante largos períodos. E um dia, sem aliás qualquer contenda explosiva, ordenou à mulher que se fosse embora. Ainda manteve contacto com o sobrinho-enteado. Mas esse mesmo quebrou-se. Vou ler o que me falta do livro. Mas a ideia que me ficou foi já a de um doente psiquiátrico, atravessado de génio, loucura, megalomania, dureza para consigo e os outros, de uma ternura ocasional mas reprimida, intempestivo, movendo-se normalmente numa órbita que não passava pelo que a vida tem de quotidiano, obstinado – e tudo isso avivado ou distorcido pelo álcool. Coincidência curiosa: a certa altura ele diz ao sobrinho seu biógrafo «sou o maior escritor do século». E foi isto precisamente que eu escrevi na dedicatória do exemplar de Aparição que lhe enviei (em ’60). Tê-lo-ei despertado para essa convicção? Tê-lo-ei confirmado nela? Hoje não sei se lhe escrevia isso, porque na distinção entre a fulgurância das suas tiradas e a construção romanesca, eu teria de optar pela primeira (e reincidiria) ou pela outra (e eu teria de optar por Proust-Joyce-Kafka). Porque o meu ideal seria a fusão de uma e outra orientação. De todo o modo, Malraux é sem a mínima dúvida o escritor mais profundo e fulgurante de todo o século xx.
Ora bem. Mas que resta dele e de todos os outros que se queiram para o Mundo que se abre diante de nós? Porque a sensação que me toma é a de que tudo isso é um jatras, uma montanha de ferro-velho, de farraparia e inutilidade – ou quase. Nós ainda nos não apercebemos bem de que toda a nossa ordenação da vida se desorganizou. Mesmo a tragédia disso se anula em face do que não sabemos mas tem já um toque de futilidade ou vazio ou quase ridículo como a convulsão que nos agitasse em Tróia ou Salamina – ou o choro que lembramos de um desgosto na infância, quando nos negaram uma guloseima que apetecíamos. A única voz que nos pode falar ainda é a ausência dela no silêncio absoluto. Porque todo o mundo terá de reorganizar-se e é um pouco infantil chorarmos hoje sobre o que morreu em vez de simplesmente reflectirmos sobre como repô-lo em pé. E deve ser por isso que instintivamente a amargura dos meus livros se tenta recompor no riso (escuro) ou na ternura. Venho assim de há tempos escrevendo fundamentalmente «histórias de amor». E uma tentação que se me esboça é reescrever o Dafne e Cloé de Longus. O amor primordial. O amor da virgindade de se ser. A história de um Adão e Eva juvenis. Vou reler o livro do grego. A ver se. De todo o modo, chorar mais, não. Reinventar a alegria inicial. A que não sei ainda e apenas me maravilha. A que, aliás, pode estar de acordo com uma serena melancolia. A ver, a ver.
*
O Alberto Silva esteve aí há dias. E como de outras vezes eu lhe falava frequentemente de um disco com o trio Odemira que sempre tocávamos pelo Natal, cheguei a pedir-lhe que mo gravasse numa cassete. E decerto para me não ouvir mais falar do disco, trouxe-mo. Eu lembrava-me de certa melodia que eu ainda entoava, lembrava-me da mancha verde que o marcava ao centro com a indicação das várias canções incluídas. Vi a bolsa em que vinha, vi o verde do centro e estremeci fortemente a um abalo que me vinha do desconhecido e longínquo e comovente. E enquanto estive no Porto, o Lúcio passou-mo a cassete para me não estragar a agulha com a sua antiguidade cheia de rugas. E agora ouço-o, ouço-o. E Évora abre-se-me no calor íntimo de uma amizade que a morte foi dissolvendo. Está uma noite gelada, nós confluímos para a casa dos amigos Silvas, primeiro na cidade, depois na Quinta da Soeira. Os nossos filhos são miúdos e a festa assim mais verdade porque o Natal é de quem não acabou ainda de ser criança. E é o que estou sendo ainda agora na doce e serena e leve melancolia de a recordar... 

VF

Sem comentários:

Enviar um comentário