domingo, 17 de fevereiro de 2013

17 – Fevereiro (sexta) [1990]

Ontem veio aqui o Adriano da Bertrand e levou o texto do romance. Foi assim uma espécie de treino para o parto definitivo. E como estou portanto no desemprego, venho aqui com mais frequência para não perder o jeito ao dedo. Para dizer o quê? Ninharias, merdilhices, nada. Viemos há pouco do almoço num restaurante e não fomos muito favorecidos. Eu comi coelho e perguntei ao criado se o dito era já avô. O Lúcio comeu porco e perguntou se era marido da porca de Murça. A Regina comeu vaca e perguntou se era a estremosa esposa do boi Ápis. Tudo duro como os tempos que correm. Mas o que sobretudo nos perdura na memória vem da TV de ontem e dos jornais de hoje. É o caso de que o Mário Soares enfiou mais um barrete esquisito dos que se usam nos doutoramentos honoris causa, agora em Turim. Que colecção ele já deve ter. Mas estava giro, como sempre, com aquela carapuça vinda decerto desde os tempos medievais, que era quando mais barretes se enfiavam. Mas juntamente com ele tivemos outro encarapuçado, que foi o Saramago, hoje glória universal, desde a caduca Europa aos progressivos hotentotes. Também lhe não ficava mal. E em curto-circuito lembrou-me o pobre Namora que há dias fez já um ano de defunto. Também a sua glória foi expansionada urbi et orbi. Mas não teve barrete. Como ele se deve ter sentido frustrado no empíreo. Mas o destino tem destas pirraças. Daqui do globo terráqueo que ainda me aguenta o peso (leve) lhe envio o meu pesar por esta insuportável gracinha da sorte. Em todo o caso, se há justiça nos céus, espero bem que o Altíssimo lhe dê no empíreo a coroa que não obteve neste execrável planeta. Mas quantos outros não obtiveram também a resplandecente auréola. Não os vou nomear para economizar papel – que está caríssimo (ainda ontem uma resma dele me custou para cima de um conto de réis). Amém. Vou repousar no sofá. E talvez que Morfeu me suavize a cólera das injustiças humanas e o coelho de córnea dureza.
*
A luz, a luz. Ela aí está de novo, com a Primavera que se anuncia. Deus desperta do Inverno ainda sonolento para recriar o Mundo. Ouço-lhe já a palavra genesíaca na claridade que se abre no espaço do escritório. Vou aproveitar a oportunidade e ser por dentro em iluminação, antes que se cumpra a ameaça já audível de que se me apague para sempre…
 VF 

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