Adopção
Senhor Cordoeiro-Mor
A adopção, apesar de vir na lei, tem sido difícil. É o que dizem os candidatos a adoptantes e que eu posso confirmar por conhecimento de causa. Está aí uma lei nova para técnicos e magistrados antigos. Em idênticas situações, a experiência ensina-nos que entre a lei nova e os antigos procedimentos, estes, não raras vezes, esmagam aquela. Talvez seja uma questão de sobrevivência. Esperemos que essa derrota não venha a repetir-se.
Na jurisprudência também há casos felizes. Esta é a história de um caso feliz.
Numa comarca do Minho, num processo para adopção plena, verificou-se a existência dos seguintes elementos:
- o menor, com quase três anos de idade, desde os quinze dias que vivia com o adoptante;
- os pais do menor consentiram, previamente, na adopção;
- o organismo de apoio social elaborou um relatório sobre a situação do menor e do requerente;
- foram inquiridas sete testemunhas;
- desse acervo de material probatório, concluía-se que entre o menor e o adoptante havia um vínculo em tudo semelhante à da filiação natural.
Encurtando razões: aquela adopção era de todo o interesse para o menor e, declarando-a, o tribunal realizaria, naquele caso, a justiça.
O Ministério Público, face a todos estes elementos, subscreveu um parecer no sentido do que pareceria óbvio.
Mas nem sempre o óbvio é, obviamente, o resultado de uma sentença.
Com o fundamento em não ter havido anterior decisão no sentido da confiança judicial ou administrativa do menor ao requerente/adoptante, o magistrado judicial julgou improcedente o pedido e não decretou a requerida adopção.
O adoptante, persistente como deve ser quem quer empenhar-se na batalha de uma adopção, interpôs recurso e argumentou com a alma.
Agora foi a vez do Ministério Público exemplificar que o óbvio nem sempre é sinónimo de coerência.
Na resposta ao recurso, e em manifesta oposição ao teor do parecer que subscrevera, veio sustentar que o recurso não merecia provimento, aderindo ao conteúdo e sentido da sentença.
O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 17 de Dezembro de 2003, foi directo ao problema, sem se deixar atropelar por desrazões formais: ficou já patente que aquela prévia fase de confiança administrativa ou judicial nada vinha acrescentar de útil à verdade material em análise. E, assim, revogando a sentença recorrida decretou a adopção plena do menor pelo requerente.
É óbvio que no acórdão se diz muito mais mas nestas coisas de histórias o que interessa é o final. E esse aqui está: feliz, como vos tinha prometido.
Não seria justo se omitisse o relator da história: o Desembargador Gomes da Silva.
Cord(i)almente
Alípio Ribeiro
Na jurisprudência também há casos felizes. Esta é a história de um caso feliz.
Numa comarca do Minho, num processo para adopção plena, verificou-se a existência dos seguintes elementos:
- o menor, com quase três anos de idade, desde os quinze dias que vivia com o adoptante;
- os pais do menor consentiram, previamente, na adopção;
- o organismo de apoio social elaborou um relatório sobre a situação do menor e do requerente;
- foram inquiridas sete testemunhas;
- desse acervo de material probatório, concluía-se que entre o menor e o adoptante havia um vínculo em tudo semelhante à da filiação natural.
Encurtando razões: aquela adopção era de todo o interesse para o menor e, declarando-a, o tribunal realizaria, naquele caso, a justiça.
O Ministério Público, face a todos estes elementos, subscreveu um parecer no sentido do que pareceria óbvio.
Mas nem sempre o óbvio é, obviamente, o resultado de uma sentença.
Com o fundamento em não ter havido anterior decisão no sentido da confiança judicial ou administrativa do menor ao requerente/adoptante, o magistrado judicial julgou improcedente o pedido e não decretou a requerida adopção.
O adoptante, persistente como deve ser quem quer empenhar-se na batalha de uma adopção, interpôs recurso e argumentou com a alma.
Agora foi a vez do Ministério Público exemplificar que o óbvio nem sempre é sinónimo de coerência.
Na resposta ao recurso, e em manifesta oposição ao teor do parecer que subscrevera, veio sustentar que o recurso não merecia provimento, aderindo ao conteúdo e sentido da sentença.
O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 17 de Dezembro de 2003, foi directo ao problema, sem se deixar atropelar por desrazões formais: ficou já patente que aquela prévia fase de confiança administrativa ou judicial nada vinha acrescentar de útil à verdade material em análise. E, assim, revogando a sentença recorrida decretou a adopção plena do menor pelo requerente.
É óbvio que no acórdão se diz muito mais mas nestas coisas de histórias o que interessa é o final. E esse aqui está: feliz, como vos tinha prometido.
Não seria justo se omitisse o relator da história: o Desembargador Gomes da Silva.
Cord(i)almente
Alípio Ribeiro
Sentença
"Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de 62 anos, será degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi arguido e que ele mesmo não contrariou, sendo acusado de ter dormido com 29 afilhadas e tendo delas 97 filhas e 37 filhos. De cinco irmãs, teve 18 filhas; de nove comadres 38 filhos e 18 filhas; de sete amas teve 29 filhos e cinco filhas; de duas escravas teve 21 filhos e sete filhas; dormiu com uma tia, chamada Ana da Cunha, de quem teve três filhas, da própria mãe teve dois filhos. Total: 299, sendo 214 do sexo feminino e 85 do sexo masculino, tendo concebido em 53 mulheres".
A pena não foi cumprida porque El-Rei D. João II lhe perdoou a morte e o mandou pôr em liberdade aos 17 dias do mês de Março de 1487 e guardar no Real Arquivo da Torre do Tombo esta sentença, devassa e mais papéis que formaram o processo.
(Do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal - Sentença proferida em 1487, no processo contra o Prior de Trancoso - Autos arquivados no armário 5º, maço 7).
A pena não foi cumprida porque El-Rei D. João II lhe perdoou a morte e o mandou pôr em liberdade aos 17 dias do mês de Março de 1487 e guardar no Real Arquivo da Torre do Tombo esta sentença, devassa e mais papéis que formaram o processo.
(Do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal - Sentença proferida em 1487, no processo contra o Prior de Trancoso - Autos arquivados no armário 5º, maço 7).
Questão de estilo
Desde há muito que penso que algo que afecta os tribunais se conexiona com o estilo judiciário. Dá a impressão de que magistrados e advogados falam para dentro, não desejam ser entendidos. Complicam.
Vejam isto:
"...para contarmos a história de um acidente de viação, começamos na pedra lascada e percorremos eruditamente toda a história dos meios de Transporte...
Para chegarmos a uma solução, por exemplo, uma solução jurídica, encetamos dissertação no Código Visigótico, percorremos a ciência que nos foi legada por todos os prestigiados mestres e, finalmente, enumeramos, em autêntico massacre, a jurisprudência de todas as relações e a do Supremo. E dêmo-nos por satisfeitos, enquanto o Supremo não abrir filiais em diversos pontos do território. Resultado: papel e mais papel. Quer dizer (em linguagem asinina): palha. Que melancolia..."- ARTUR COSTA, in JORNAL DE NOTÍCIAS, 11/11/1993.
E o Sr. Presidente da República:
"...as sentenças, como, aliás, os acórdãos, não são dissertações de mestrado, nem monografias curriculares...por isso quer a justeza da identificação do direito aplicável, quer o mérito da decisão, em nada saem beneficiados por largas exposições doutrinárias, recheadas de citações, ou por extensas excursões jurisprudenciais.." Discurso de Abertura do Ano Judicial, 25/01/00.
O que Artur Costa dizia em 1993 e o Presidente em 2000, nos dias de hoje, é verdadeiramente confrangedor. Os computadores, de instrumento valioso, transformaram o estilo judiciário numa coisa incompreensível, complexa e inútil. A tal "palha" de que falou, com propriedade, toda a propriedade, o autor referido.
Tenho presente aquele colega que, tendo dúvidas, se abeirou doutro que tinha por mais sabedor e lhe pediu a opinião. O inquirido despejou uma série de acórdãos não conformes entre si. O da dúvida quis saber não dos acórdãos mas da opinião pessoal do colega. Não tinha. Ficou o primeiro com a dúvida..
Todos nos confrontamos, no quotidiano, com despachos, alegações, pareceres, sentenças, acórdãos, tudo enxameado de citações de acórdãos, de "fundamentações" nos mestres.
Para tratar de um crime de ofensas à integridade física, deambula-se pela noção de "integridade física", de insuficiência da matéria de facto, de erro notório, de contradição insanável. Sempre com citação de acórdãos. Acrescenta-se-lhes a noção de dolo, dolo específico, dolo eventual, consciência da ilicitude e, se for caso disso, de crime de perigo, abstracto ou concreto. Sempre com recurso aos mestres.
Salva-nos que, ao contrário do temor de Artur Costa, ainda se não abriram "filiais" do STJ no território nacional, com excepção da do Porto que, segundo se vê, funciona apenas virtualmente.
Isso tudo transmite a inegável sensação de que magistrados e advogados actuam no processo, ficando alheios ao drama humano que se coloca a montante dos papeis - o que é sobremodo grave no processo penal.
Jurisprudência e doutrina constituem, sem sombra de dúvidas, instrumentos fundamentais para a realização do Direito e estabilidade da Justiça. Todos devemos saber, ou temos o direito de saber, com o que podemos contar. Não podem, nem devem, com toda a certeza, substituir, os magistrados e os advogados.
Se a isso tudo, que já não é pouco, se adicionar, a novidade, "à portuguesa", das gravações e transcrições, vê-se, só por aí, o caricato da situação. Digam-me, se alguém sabe, quantas decisões, em questões de facto, foram alteradas, por via das transcrições que, como escreveu no Público, em tempos, Leonas Dantas, e com toda a razão, têm uma utilidade: fomentar empresas privadas de transcrição que fazem o que, segundo o STJ, devia ser feito pelo tribunal que, como é óbvio, não pode fazê-lo.
Dos magistrados e advogados se espera competência profissional, deontologia, do Ministério Público e Juízes se exige independência e imparcialidade. Não que sejam fazedores de teses de mestrado, ou de monografias.
Caramba: deixem que o arguido saiba, ao menos, se foi condenado ou absolvido. Garanto que, não poucas vezes, não sabe. Vai ao explicador.
Incómodo? Sim. Eu já folheei o último livro de António Ramos Rosa ("O Que Não Pode Ser Dito") mas não cito, pois só folheei. Mas deixo-vos do autor só isto:
"Condenai-me juízes de toda a minha vida
agora que estou sujo e não me posso lavar
nem ao sol nem à chuva nem à sombra de uma árvore
agora que perdi todas as margens e me afundei no mar..."
Está para quem quiser ler, no último JL.
pinto nogueira.
Vejam isto:
"...para contarmos a história de um acidente de viação, começamos na pedra lascada e percorremos eruditamente toda a história dos meios de Transporte...
Para chegarmos a uma solução, por exemplo, uma solução jurídica, encetamos dissertação no Código Visigótico, percorremos a ciência que nos foi legada por todos os prestigiados mestres e, finalmente, enumeramos, em autêntico massacre, a jurisprudência de todas as relações e a do Supremo. E dêmo-nos por satisfeitos, enquanto o Supremo não abrir filiais em diversos pontos do território. Resultado: papel e mais papel. Quer dizer (em linguagem asinina): palha. Que melancolia..."- ARTUR COSTA, in JORNAL DE NOTÍCIAS, 11/11/1993.
E o Sr. Presidente da República:
"...as sentenças, como, aliás, os acórdãos, não são dissertações de mestrado, nem monografias curriculares...por isso quer a justeza da identificação do direito aplicável, quer o mérito da decisão, em nada saem beneficiados por largas exposições doutrinárias, recheadas de citações, ou por extensas excursões jurisprudenciais.." Discurso de Abertura do Ano Judicial, 25/01/00.
O que Artur Costa dizia em 1993 e o Presidente em 2000, nos dias de hoje, é verdadeiramente confrangedor. Os computadores, de instrumento valioso, transformaram o estilo judiciário numa coisa incompreensível, complexa e inútil. A tal "palha" de que falou, com propriedade, toda a propriedade, o autor referido.
Tenho presente aquele colega que, tendo dúvidas, se abeirou doutro que tinha por mais sabedor e lhe pediu a opinião. O inquirido despejou uma série de acórdãos não conformes entre si. O da dúvida quis saber não dos acórdãos mas da opinião pessoal do colega. Não tinha. Ficou o primeiro com a dúvida..
Todos nos confrontamos, no quotidiano, com despachos, alegações, pareceres, sentenças, acórdãos, tudo enxameado de citações de acórdãos, de "fundamentações" nos mestres.
Para tratar de um crime de ofensas à integridade física, deambula-se pela noção de "integridade física", de insuficiência da matéria de facto, de erro notório, de contradição insanável. Sempre com citação de acórdãos. Acrescenta-se-lhes a noção de dolo, dolo específico, dolo eventual, consciência da ilicitude e, se for caso disso, de crime de perigo, abstracto ou concreto. Sempre com recurso aos mestres.
Salva-nos que, ao contrário do temor de Artur Costa, ainda se não abriram "filiais" do STJ no território nacional, com excepção da do Porto que, segundo se vê, funciona apenas virtualmente.
Isso tudo transmite a inegável sensação de que magistrados e advogados actuam no processo, ficando alheios ao drama humano que se coloca a montante dos papeis - o que é sobremodo grave no processo penal.
Jurisprudência e doutrina constituem, sem sombra de dúvidas, instrumentos fundamentais para a realização do Direito e estabilidade da Justiça. Todos devemos saber, ou temos o direito de saber, com o que podemos contar. Não podem, nem devem, com toda a certeza, substituir, os magistrados e os advogados.
Se a isso tudo, que já não é pouco, se adicionar, a novidade, "à portuguesa", das gravações e transcrições, vê-se, só por aí, o caricato da situação. Digam-me, se alguém sabe, quantas decisões, em questões de facto, foram alteradas, por via das transcrições que, como escreveu no Público, em tempos, Leonas Dantas, e com toda a razão, têm uma utilidade: fomentar empresas privadas de transcrição que fazem o que, segundo o STJ, devia ser feito pelo tribunal que, como é óbvio, não pode fazê-lo.
Dos magistrados e advogados se espera competência profissional, deontologia, do Ministério Público e Juízes se exige independência e imparcialidade. Não que sejam fazedores de teses de mestrado, ou de monografias.
Caramba: deixem que o arguido saiba, ao menos, se foi condenado ou absolvido. Garanto que, não poucas vezes, não sabe. Vai ao explicador.
Incómodo? Sim. Eu já folheei o último livro de António Ramos Rosa ("O Que Não Pode Ser Dito") mas não cito, pois só folheei. Mas deixo-vos do autor só isto:
"Condenai-me juízes de toda a minha vida
agora que estou sujo e não me posso lavar
nem ao sol nem à chuva nem à sombra de uma árvore
agora que perdi todas as margens e me afundei no mar..."
Está para quem quiser ler, no último JL.
pinto nogueira.
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Encontra-se nos escaparates, desde há dias, a dissertação de mestrado em Sociologia, apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, de JOÃO PAULO DIAS, O Mundo dos Magistrados - A evolução da organização e do auto-governo judiciário, Almedina, com 280 págs.De leitura obrigatória.
O livro abre com a seguinte citação, que vem a propósito:
«Entre os eruditos, os jurisconsultos reivindicam o primeiro lugar, pois não há gente mais vaidosa. Rolam assiduamente a pedra de Sisifo, revolvendo seiscentas leis para interpretar um assunto a que elas não se referem, acumulando glosas sobre glosas, opiniões sobre opiniões, trabalhando assim para que pareça dificílimo o estudo a que se dedicam. Estimam que é meritório e preclaro tudo quanto é laborioso». - Erasmo, Elogio da Loucura
O livro abre com a seguinte citação, que vem a propósito:
«Entre os eruditos, os jurisconsultos reivindicam o primeiro lugar, pois não há gente mais vaidosa. Rolam assiduamente a pedra de Sisifo, revolvendo seiscentas leis para interpretar um assunto a que elas não se referem, acumulando glosas sobre glosas, opiniões sobre opiniões, trabalhando assim para que pareça dificílimo o estudo a que se dedicam. Estimam que é meritório e preclaro tudo quanto é laborioso». - Erasmo, Elogio da Loucura
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