quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Os Cordoeiros: Segunda-feira, Fevereiro 16 [2004]

Despeitos

Andei a folhear as pretensões do Partido Socialista no que diz respeito ao processo penal, graças aos links que o Cordoeiro-Mor, sempre atento, disponibilizou. Não tive encantos nem desencantos. Os discursos vários antes produzidos por figuras e figurões deixavam adivinhar o teor da generalidade das propostas. Não será por estas alterações que o mundo da justiça vai mudar. O mundo da justiça é um romance de cordel, sem fim à vista.
O deputado Lacão, rosto visível das propostas, não convence nas razões. Em matéria de justiça, as pulsões do Partido Socialista dividiram-se sempre entre uma tentação securitária e uma deriva libertária. Na primeira campanha eleitoral do Engenheiro Guterres, em 1995, o ataque a Cavaco Silva, em matéria de justiça, foi feito pela direita baixa. Chegou-se à demagogia delirante dos polícias prendem, os juízes soltam.
As reformas de 2000, com o carimbo do ministro António Costa, foram, uma vez mais, no sentido da vocação securitária. Curiosamente, o Partido Socialista gere melhor os medos sociais do que o seu vizinho Social-Democrata. Os ministros Nogueira e Laborinho, por mais incómodos que tivessem sido para o conservadorismo das corporações judiciárias, foram ministros das liberdades.
Não vale a pena fazer tanto barulho por tão pouco. O segredo de justiça é o folclore da proposta. Faz parte das regras da política. É o chamariz da comunicação. Num país em que os níveis de civismo não são aconselháveis, só a hipocrisia poderia fazer crer que as propostas do Partido Socialista, nesta matéria, irão resolver seja o que for. Tem razão o meu amigo, com quem hoje falei ao telefone: o despeito não faz boas leis.

A.R.
# posto por til @ 16.2.04

ESPIAR

Neste “espaço de livre expressão” tenho sido censurado.
Que uso terminologia contundente. Grossa. Que me exponho demasiado. Que dá a ideia de me dedicar muito a isto.
O estilo, como diria o outro, é o homem. Da exposição, trato eu. Da dedicação resulta de que não minimizo o meu pensamento à secura processual. Gosto de me divertir. Sou magistrado, mas, igualmente, aprecio o entretenimento.
Acontece que escrevo aqui para ser lido, “intra muros”, é certo. O meu universo de leitores é exíguo, não passa de meia dúzia de pessoas. Não me esperam os leitores dos gajos que escrevem nos jornais, ou dos que se fazem ver e ouvir na TV. Mas é um “universo”. Quem lê, se lê.
Vai daí que decidi dissimular o estilo, contrariando o tal estilo é o homem, faço um jogo comigo próprio e não vou ferir as sensibilidades de magistrados: os magistrados são, por norma, muito sensíveis.
Vem isto a propósito, ou despropósito, da violação. Não de uma dama encadernada de Chanel ou Armani, ou outro costureiro famoso. Essas nunca são violadas, nem violam.
Mas da violação do segredo.
Há quem, não há muito, se estivesse nas tintas (era a frase, aquela frase que eu queria citar, mas dissimulo) para o segredo de justiça.
Mas é claro que a todos assiste o direito de mudar de ideias, mesmo para defender o que antes se entendia inócuo, um empecilho a algo que nos interessava saber.
Então, segundo certo anteprojecto de “novo Código de Processo Penal”, é preciso resguardar o segredo, aquele que antes valia tanto que, em cima dele, se fazia o que se deveria fazer. Compreendem?
No dito anteprojecto, coube uma fórmula infalível: escutar por telefone, microfones ou coisas semelhantes, os violadores. Vamos, para defender o sigilo, passar a escutar toda a gente. Em primeiro lugar: os procuradores, os juízes, os advogados e os funcionários. Tudo quanto tenha estado em contacto com o processo em segredo. Nos tribunais, somos escutados por outros tribunais, em casa somos escutados à distância (também se lá pode colocar um microfone, p. ex., debaixo da cama). Acabou-se a intimidade.
Por minha parte, sugeria escutas preventivas: quem tivesse a seu cargo um processo em segredo, ficava sob escuta. Isso, sim, era eficaz.
De todo o modo, os autores não olvidaram tudo: criaram uma Comissão de Fiscalização das escutas. Que vai estar também lá em casa, a verificar se o microfone foi colocado devidamente, de modo a que tudo que se diz no leito conjugal fica muito bem gravadinho para gáudio de quem ouve. Aí, o problema é da Comissão que, coitada, terá de ter o dom da ubiquidade.
É tudo muito democrático.
Muito direitos, liberdades e garantias.
Daqui a uns tempos, os projectistas, quando o projecto feito lei lhes cair em cima, já têm responsáveis: os do costume, numa palavra e em terminologia da TV, a “Justiça” em que, afirmarão, continuam a crer.
E ponto final. O estilo é mesmo o homem. Em boas contas, “esse et non esse, non potest esse”.

PN

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