BOM SENSO
Quando ignoramos o sentido do verbo, ou dele temos uma ideia difusa, tal como nos ensinaram na escola primária, consultamos o dicionário: da Porto Editora, ou, os mais eruditos e rigorosos, o Compacto da Língua Portuguesa e, ultimamente, da Academia de Ciências de Lisboa. Mas isto agora já não é bem assim, pois que, aí também, a evolução tecnológica acarretou outra lógica, a da ida à Internet. As coisas tornaram-se, segundo parece, mais complicadas.
E como são complexas, o legislador, com suas tendências abrangentes e totalitárias (quer estar em tudo quanto é sítio), já entra nos domínios que eram, e são, dos dicionários. Nada lhe escapa, na ânsia de nos fichar até no uso da língua materna. Define, do alto do seu poder democrático, em normas tipo editais, conceitos que são da filosofia, da sociologia e da história: é um legislador omnisciente e omnipresente que usurpa às ciências o que delas sempre foi e, com certeza, sempre será. É um legislador que tem o direito como um fim e não como um instrumento regulador das relações sociais. E que tem o direito de nos leccionar a língua que outros, em tempos, mais apetrechados, nos leccionaram.
Vejam, por exemplo, e como paradigma, o DR. II do ano corrente, a fls. 2818. O legislador exige "...bom senso...". No Dicionário, onde o tal verbo devia descansar pacificamente, a palavra ("...no princípio era o verbo...") era sinónimo de capacidade de alguém pensar com lógica (chama-se a isto "raciocinar"), com acerto, sem influências de paixão ou emotividade. Deste modo, se é isto que o legislador quer na tal lei de fls. 2818, na lógica das coisas, ou seja, no bom senso, a afirmação da exigência do bom senso é, sem mais, uma redundância. Ou o legislador quer mudar o sentido do verbo e, não o redefinindo (o legislador supõe que pode dizer que o branco é preto?), tombou, inevitavelmente num mais desacertado mau senso. Temos, pois, aqui, um paradigma de como a falta de senso se transformou, por contradição, em bom senso. Com a chancela do legislador.
Mas, além do legislador, aquele ser ontológico que faz leis, há outros centros criadores de bom senso. Um causídico, assustador e apopléctico, chega à TV e, com a legitimidade que lhe vem do dinheiro, anuncia que vai provar, na Televisão (é verdade que eu vi e ouvi e perguntei e outros viram e ouviram) que o juiz não tinha razão e distorceu tudo para prejudicar o cliente que, sentencia, está inocente. Mas tem de ter autorização da corporação. E, dizem, pede-a. Requer... protesta. Quer ver a vítima julgada na TV e pelo Povo. Mesmo assim. Ele sabe que confunde. Que o juiz não vai à televisão, que vai falar sozinho e o que disser é verdade. O direito que ele disser é o direito que o juiz (mal) disse, pois o que ele diz na TV passa a ser o que o juiz disse, sem o dizer. A corporação não esconde o embaraço e demora em decidir: quer agradar ao confrade, mas tem um obstáculo: a falta de senso do requerente que quer provar na TV o que só pode ser provado noutro "site". Todavia, devo acrescentar, por bom senso, que o meu bom senso também é objecto de julgamento pelo bom senso alheio. Dirão, no caso, que imperou a falta dele. Paciência!
E assim vai o "BOM SENSO".
Pinto Nogueira
# posto por Rato da Costa @ 27.2.04
E como são complexas, o legislador, com suas tendências abrangentes e totalitárias (quer estar em tudo quanto é sítio), já entra nos domínios que eram, e são, dos dicionários. Nada lhe escapa, na ânsia de nos fichar até no uso da língua materna. Define, do alto do seu poder democrático, em normas tipo editais, conceitos que são da filosofia, da sociologia e da história: é um legislador omnisciente e omnipresente que usurpa às ciências o que delas sempre foi e, com certeza, sempre será. É um legislador que tem o direito como um fim e não como um instrumento regulador das relações sociais. E que tem o direito de nos leccionar a língua que outros, em tempos, mais apetrechados, nos leccionaram.
Vejam, por exemplo, e como paradigma, o DR. II do ano corrente, a fls. 2818. O legislador exige "...bom senso...". No Dicionário, onde o tal verbo devia descansar pacificamente, a palavra ("...no princípio era o verbo...") era sinónimo de capacidade de alguém pensar com lógica (chama-se a isto "raciocinar"), com acerto, sem influências de paixão ou emotividade. Deste modo, se é isto que o legislador quer na tal lei de fls. 2818, na lógica das coisas, ou seja, no bom senso, a afirmação da exigência do bom senso é, sem mais, uma redundância. Ou o legislador quer mudar o sentido do verbo e, não o redefinindo (o legislador supõe que pode dizer que o branco é preto?), tombou, inevitavelmente num mais desacertado mau senso. Temos, pois, aqui, um paradigma de como a falta de senso se transformou, por contradição, em bom senso. Com a chancela do legislador.
Mas, além do legislador, aquele ser ontológico que faz leis, há outros centros criadores de bom senso. Um causídico, assustador e apopléctico, chega à TV e, com a legitimidade que lhe vem do dinheiro, anuncia que vai provar, na Televisão (é verdade que eu vi e ouvi e perguntei e outros viram e ouviram) que o juiz não tinha razão e distorceu tudo para prejudicar o cliente que, sentencia, está inocente. Mas tem de ter autorização da corporação. E, dizem, pede-a. Requer... protesta. Quer ver a vítima julgada na TV e pelo Povo. Mesmo assim. Ele sabe que confunde. Que o juiz não vai à televisão, que vai falar sozinho e o que disser é verdade. O direito que ele disser é o direito que o juiz (mal) disse, pois o que ele diz na TV passa a ser o que o juiz disse, sem o dizer. A corporação não esconde o embaraço e demora em decidir: quer agradar ao confrade, mas tem um obstáculo: a falta de senso do requerente que quer provar na TV o que só pode ser provado noutro "site". Todavia, devo acrescentar, por bom senso, que o meu bom senso também é objecto de julgamento pelo bom senso alheio. Dirão, no caso, que imperou a falta dele. Paciência!
E assim vai o "BOM SENSO".
Pinto Nogueira
# posto por Rato da Costa @ 27.2.04
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