E agora, que é que se segue? Deitou-se Deus às malvas e logo a esse impulso veio uma quantidade de coisas atrás. E foi a História e a ideologia e o «real» e o homem e o «eu» e a filosofia e a palavra e a literatura e as artes e Marx com o seu comunismo — há mais alguma coisa aí? Estamos com a mão na massa e é para despachar. E uma alegria. Deitaram-se os móveis pela janela fora e agora estamos um pouco encavacados com a casa limpa. No receio de ficar algum traste para trás, ainda damos uma volta escrupulosa pelos recantos. Não há nada, voou tudo. E agora? E agora? Pormo-nos à janela a ver quem passa? Deitarmo-nos a nós próprios pela janela por coerência metodológica? Pormo-nos a contar anedotas? O que é engraçado é que muita gente continua sossegadamente a ir à missa, a pregar nos comícios, a contar histórias ao analfabetismo. Mas então como é? Ninguém lhes leva a notícia? O PCP, por exemplo, que ternura. Na Roma deles, que fica em Moscovo, já lhe deram aviso de que a festa acabou. Não querem saber. E têm os seus comícios, os seus comités, o seu neo-realismo. E os nossos escribas, meus irmãos? Os escritores meus irmãos — e eu próprio — continuamos a fazer romance como se não fosse nada connosco. O artigo tem mercado interno e é artigo de exportação. Assim nos desunhamos a colocar o produto. Eu, em todo o caso, não vou bem. Primeiro, porque a minha mercadoria não tem colocação fácil. Segundo, porque o meu instrumental de produção começa a estar degradado. A começar pelo engenho, que devia aguçar-se com a necessidade. Mas justamente a necessidade (interna) não aperta muito comigo. E começa a viver (mal) dos rendimentos. Que Deus se amerceie de mim. Amém.
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Quando falamos da censura salazarista, de que tenho graves queixas a contabilizar como as não têm muitos que se queixam dela, falamos de uma coisa sabida, identificada, oficiai e conatural ao regime. Mas ninguém fala da censura comunista que actuava ferozmente entremeada àquela. Em todos os centros de decisão, nos jornais, nas revistas, nas livrarias e editoras nacionais ou estrangeiras, nos encontros de café, ela decidia, passava palavra, destruía uma reputação literária e moral, decretava os génios e os cretinos, perseguia os que eram de opinião contrária, decidia em quais jornais se era reaccionário ou mais calhado com o progresso, trocava estes sinais consoante as instruções cimeiras ou a conveniência dos gajos porreiros, decretava mesmo quais os escritores de outrora que se deviam enaltecer, quais os que se deviam enlamear, decidiam que o Camilo é que sim, mesmo que reaccionário e dado ao campo que é propício à reacção, que o Eça é que não, mesmo que citadino e dado pois ao progresso, mesmo que desmantelador da reacção do seu tempo. E esta uma censura que ainda funciona, embora já quebrada dos rins e dos artelhos. Já não convence satisfatoriamente a não ser os retardados mentais, mas é ainda persistente, canina e musculada. O sandeu de quem atrás falei é funcionário. Mas a sua retracção cerebral é já notória e paradigmática. Em todo o caso.
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