In illo tempore, no tempo em que eu andava em Coimbra, ao entrar na Associação Académica, que era na rua Larga, encontrei um dia à porta um amigo que recebia queixas creio que do porteiro, um tipo sebento, barba por fazer e que tinha muitos quistos na cabeça quando erguia o boné de pala. Percebi que se lamentava das infidelidades da mulher em grande desalento. Explicava então com quem cometia ela a sua traição. Um porco, um reles, um homem do mais reles que se podia conceber. E por fim, para se perceber bem o importante da categoria do sacana e da baixeza da mulher, explicava para o meu amigo:
— Porque, digamos, se fosse assim com uma pessoa como o sr. doutor, ainda vá lá, ainda se compreendia. Mas com um tipo do mais ordinário que se possa imaginar…
Portanto, havia um código de honra, sem dúvida, mas não tanto. Havia antes disso um código de classe, como eu o pensei logo, cheio de neo-realismo na alma.
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E a propósito de Neo-Realismo: no sábado o Expresso trazia um artigo de balanço à obra do Namora. Artigo calmo, em tom fúnebre, mas de efeitos devastadores. Do Namora, em suma, não vai ficar nada e ter-se-á dissipado com as suas boas intenções. E imediatamente pus-me a pensar em como só a morte permite o à-vontade de um balanço (mas nem sempre, porque há que morrerem também os que lhe sustentavam a glória). E imediatamente pus-me a pensar: e tu? Quem é que te vai cair em cima? E como suaste para te equilibrares no balanço. Não tiveste vida sossegada, como te irão deixar sossegar? Mas não ouças. Aconchegado na tua cova, até talvez enfeitada de flores, não ouças. Ou ouve apenas o silêncio. Dorme.
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E antes que seja tarde: é absolutamente necessário deixar aqui expresso para mim mesmo que isto não e a continuação de Conta-Corrente. O diário acabou no volume V. O que aqui vai são escorralhas do acontecer diário, pois que as «reflexões» vão no outro livro que escrevo também paralelamente a este e ao romance. Preciso de escrever e nem sempre estou disponível. Então desço a estes paralipomena, que é um lixo nem talvez aproveitável como adubo do resto. Podia fazer ginástica, fazer o meu cross com vistas cardíacas. Dá trabalho. E vê-se menos. Portanto — escrevo. Escrevo realmente como queria Marco Aurélio: eis emautón. É um vício como fumar. E é um modo de aproveitar este livro em branco enviado pela editora francesa «La Métaillié». Ponto final.
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Resguardo-me na ideia de que não continuo a escrever o romance porque a saúde não ajuda. E é verdade. Mas por debaixo dessa verdade há uma outra que se desculpa com essa e é que me parece hoje incrível que escrever ainda romance tenha ainda sentido. Não é novidade para mim, pois que já o sabia e o tenho dito. Mas é novidade para o meu sentir interior. Claro que vou insistir, logo que o físico esteja de acordo. Mas admito perfeitamente que a meio da corrida eu rebente do esforço. E então sento-me. E o director da corrida naturalmente desclassifica-me. E arrumo o meu atletismo.
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É curioso. O que Salazar sobretudo pretendia, embora com meios bestiais e muito estúpidos, era impedir que entre nós se instalasse o comunismo. É o que afinal gostariam de ter feito todos os países de Leste e seus semelhantes. E a propósito: quem foi mais criminoso — Salazar ou Estaline? Era muito vital sabê-lo.
V.F.
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