segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

[1989] 7 - Fevereiro (terça).

Quando foi do prémio APE disse eu, nas palavras que proferi, que a morte das ideologias era um bem por não haver uma que justificasse nova guerra. No regresso ao hotel para o almoço, e após a cerimónia, Mário Soares reprovou o meu parecer pela razão de que a ideologia democrática ou da liberdade não estava morta e que apenas o estavam as ideologias totalitárias. Não repliquei, até porque não era oportuno, mas fiquei a remoer a observação. E anotei para mim que havia ali um pequeno equívoco. Porque a democracia com liberdade não é uma ideologia mas a abertura por isso mesmo a todas elas, mesmo a algumas totalitárias como o comunismo. Mas se a democracia aceita todas as verdades, é porque não existe nenhuma delas. A admissão de todas as correntes políticas eleitas para o parlamento significa que todas se equivalem ou seja que nenhuma é válida absolutamente. A democracia com a liberdade é portanto o reconhecimento de que as ideologias morreram. A democracia é o caldo de todas elas para que possam existir, já que o não podem cada uma por si. A democracia não é uma ideologia, mas a única possibilidade de existência da sua não-existência. O oxigénio que as sustenta em vida. Ou o cantochão que as sustenta mortas.
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Porque é que um qualquer imbecil pode ter opiniões públicas sobre escritores e não as ter sobre pintores, músicos, arquitectos, etc.? Porque é que um escritor pode ser grosseiro em público para um outro camarada e raro um pintor virá dizer mal em público sobre outro pintor ou um músico sobre outro músico? A razão é simples: é que a literatura é a única forma de arte que pertence a toda a gente por ter como matéria-prima o que é comum a toda ela, ou seja, a palavra na sua utilização corrente de exprimir e contar. A poesia também se serve de palavras, mas não da sua utilização prática. Eis porque se um cretino diz sem pudor nem vergonha pública cretinices sobre um romancista, já se abstém de dizê-las sobre um poeta. Pressupõe-se assim que ser romancista é uma forma específica de se dizerem coisas nos jornais, nos cafés e outros sítios de cavaqueira e não uma forma específica de se escrever. Tem pois sentido aparente que se diga de A ou B que são medíocres, porque é isso um modo compreensível, embora discutível, de se ter opinião sobre o que é de nós todos e é por isso inteligível. Mas como dizer que o pintor tal ou mesmo o poeta, são medíocres ou excelentes? Não é conversa que se tenha em público, porque o público não entende. E é por isso que um pintor não diz mal de outro pintor em público (ou um poeta de um poeta, um arquitecto de outro, etc.) pois que é isso uma conversa de seita, de iniciados, ininteligível para o pagode comum.

V.F.

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