sábado, 5 de fevereiro de 2011

[1989] 5 – Fevereiro (domingo).

Já não devo acabar o romance. Sinto-o não da parte exterior de mim onde as decisões se podem alterar e os avisos são precários, mas do íntimo de mim próprio, quero dizer do meu corpo onde não há apelo possível. Tenho pena? Um pouco. Mas na realidade todo o meu país cultural me obriga tacitamente a estar calado. Que eu mexa, não importa, desde que se não saiba que mexi. As minhas ralações com esse país do meu país são na realidade intrigantes. Por exemplo: não estou de modo algum já a salvo de que um cabotino me diga em público, sem que o houvesse provocado, que eu sou «um escritor muito mau, de terceira ou quarta categoria». Foi o que escreveu há dias um Vasco Pulido Valente. Era improvável que em vida se dissesse isso de qualquer escritor que tem colaborado o seu tanto na literatura do país. Porquê este ser uma excepção comigo? Não, não é o ficar «ressentido» com toda a razão para isso — é o ficar intrigado. Como posso ter eu alguma confiança no meu senso — e terem-no os que amam o que escrevo — para um pouco de ordem na vida? Um problema de ódio político já não funciona nem poderia funcionar como o tipo em questão. Que é que funciona? O problema político funcionou decerto nos 30 últimos anos — Pinheiro Torres, Óscar Lopes, Baptista-Bastos (este ainda à canela), Lobo Antunes e outros e outros e outros. Mas esse problema esgotou-se, sobretudo após a perestroika. Serei mesmo um escritor de «quarta»? O que sempre me incomodou nas relações com a tabela das contas para os outros foi o receio de ter o juízo avariado. Como é possível eu ter avaria para me ser impossível julgar-me de «terceira»? Bem sei que se se é de terceira, não se avalia o que a exceda. Mas eu avalio os que o universo reconheceu de primeira. Como é que me falha aqui o instrumento do julgar? Será que tenho só medidas para escaIas menores (ou maiores) e que não funcionam para as maiores (ou menores)?
De todo o modo o meu país cultural pode repousar. Não me pode impedir de escrever, como as ditaduras o não puderam de pensar. Mas tudo se passará de mim comigo para eu repousar também.

V.F.

Sem comentários:

Enviar um comentário