Recebi ontem do Luís Mourão as primeiras folhas da sua tese de mestrado. Que coisa gira. Este Luís Mourão é um jovem professor universitário de Braga e que não conheço pessoalmente. Mas carteamo-nos um pouco pela razão de ele se interessar muito pelas minhas coisas. A tese de mestrado é sobre o meu Conta-Corrente e tem o título imprevisto de Conta-Corrente 6. Mas o mais imprevisto está na sua organização. Porque é um diário, com as datas assinaladas, ao longo do qual ele vai dissertando sobre a natureza de um diário, a sua ligação ao pós-modernismo e naturalmente acima de tudo sobre a matéria do meu. E intercalado a isso, cartas dele a mim e ao E. Prado Coelho, pedindo-me também, como vai pedir ao EPC, que lhe escrevamos para inserir as nossas cartas no todo da tese. Haverá aggiornamiento bastante na tradição académica para aceitarem a inovação? De qualquer modo, L. Mourão é um fino ensaísta que dentro de pouco tempo será «figura de proa» no ensaio português. Tem as três qualidades necessárias para a proeza: boa informação, agudeza e bela escrita. Será decerto um inovador, ou um continuador do que julgo inovação, no nosso ensaísmo ainda perro de erudição, pouco aventurado à criatividade que dá prazer ler. Com estas qualidades só o Lourenço me parece funcionar na nossa praça. Há o Rosa, sem dúvida. Mas o ensaísmo dele, limitado à poesia, quando não é judicativo, é ainda um modo de ser poeta na prosa. Nós que descendemos de aventureiros, perdemos o cromossoma da aventura. E é fundamentalmente por isso que não arriscamos nada na filosofia. Não somos estúpidos — ó imbecis. Temos inteligência que chegue. Mas ser «filósofo» é ainda entre nós razão para nos sentirmos encavacados. Somos ridículos no nosso pavor de ser ridículos. Até porque os que se têm aventurado, são só filósofos na casca e (quase) vazios no miolo. Assim a nossa filosofia tem de se ir desencantar nos escritores. Sei bem que, mesmo aí, somos escassos. Camões, Antero (mais doutrinador que poeta aí, ou seja criador), Pessoa, Raul Brandão — e acabou. Criar filosofia com a arte é ainda a única forma plausível de se não passar por pícaro. Mas nem sempre. Ou de se não passar por pedante e megalómano. Nós somos excepção à regra de Descartes (que já vem de Zurara, que a remete para os «antigos», sem nos dizer quais) segundo o qual o bom-senso é a coisa melhor partilhada no Mundo. E assim, o que nos caracteriza para o mais e para o menos, é a insensatez. Se nos passa diante a ideia de que fizemos coisas notáveis, o resultado é esbarrigarmo-nos logo em vivório e foguetório. Se num intervalo de acalmia admitimos que nem por isso, imediatamente, no segredo das consciências, nos consideramos abaixo de cão. Mas já vou disparado e é de travar.
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Não basta ter talento nem mesmo génio. E preciso ainda saber administrá-lo, dar-lhe educação, saber orientá-lo para que ele saiba onde deve pôr os pés. Posso ser um grande organizador e à organização de um Estado preferir a de uma loja de merceeiro. Posso ser um bom observador, mas em vez de observar os grandes movimentos sociais ou as grandes paixões, optar por observar o comportamento da minha vizinha viúva. Posso ser perfeitamente sensível às dores do Mundo e preferir as dores do meu reumatismo. Posso ser, se quiser, um fino psicólogo e ceder antes à minha queda para o lirismo ecologista. Ter uma grande capacidade para contar histórias muito cheias de engenho e ineditismo e ir-me mais ao jeito a tineta estética e metafórica. Ora bem. Todas estas preferências ou não, não têm que ver por força com um problema de capacidade, mas de gosto, prazer. E a orientação para o que se deve é possível que esteja já implícita no génio ou no talento. É mais provável que esteja no sentirmo-nos melhor num apartamento do que num castelo. Somos perfeitamente capazes de governar um castelo. Mas não de superarmos as chatices disso com o prazer disso, que está mais sensível onde não é isso. Está o génio também no gosto de se ser génio? Só se se não for capaz dele. Mas para o sabermos teremos ao menos de tentá-lo. Talvez educando-o para isso. Mas aceitar essa educação é já aceitá-la no que nos não é confortável.
Creio que me perdi. Não volto atrás para saber. E será como se não. Pois.
V.F.
V.F.
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