Garganta, 24 de Agosto de 1979 – Festa de S. Bartolomeu numa das povoações pastoris mais arcaicas da Montanha, celta até nos monumentos megalíticos que a cercam, berço de antepassados meus. Mas o santo não conseguiu estar à altura da missão de que a Igreja, na sua sabedoria profunda, o incumbiu. O espírito do mal, nome cristão da violência, que foi encarregado de manter submisso aos pés e que como tal figura na imagem entronizada no altar, desprende-se, em cada romaria, da argola do bem. E aí o temos nós à solta, terrífico, a obrigar a aldeia em peso a tingir os seus lajedos com sangue sacrificial. Sangue outrora certamente humano, mas agora de inocentes vítimas de substituição. Um ror de ovelhas e vitelas imoladas numa carnificina expiatória, depois ritualmente devoradas em todos os lares, transformados em santuários de exorcização. E o forasteiro que se recusa a entrar e a comungar no ágape idolátrico, mesmo que seja reconhecidamente, como eu, um parente longínquo do anfitrião, ofende-o de tal modo, e, através dele, à comunidade inteira, que passa no mesmo instante de amigo a inimigo, de bem-vindo a indesejado. Sem unanimidade de valores não há paz colectiva. Ninguém pode, pois, lavar as mãos do crime propiciatório. O próprio abade tem de esquecer momentaneamente os preceitos e paganizar a gula canónica, se quer que, durante o ano, aquelas almas bárbaras lhe escutem pacientemente as homilias. Mais atentas à voz obscura do passado do que à palavra catequética do presente, nenhuma pregação as faz esquecer as suas verdades primordiais. Só quem se lembra se identifica. O instinto de conservação sabe que a morte é perder a memória.
p. 107 e s.
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