sábado, 20 de agosto de 2011

FIÉIS DEFUNTOS


Graves filósofos têm demonstrado a influência dos astros no comportamento do homem. Eu, que não sou grave nem filósofo, descobri a influência do homem no comportamento dos astros.
Digo isto porque hoje, dia dos Fiéis Defuntos, chove, se não copiosa, pelo menos insistentemente.
Não sou grande fouce em silogismos. Mas a priori, se a natureza chora, é porque está triste. E, se está triste, é porque tem saudades. Saudades daqueles a quem primeiro deu a vida e depois a morte. Por isso se diz que «nascer e morrer são fenómenos naturais».
Apesar da chuva, fiz uma longa visita ao cemitério. Um profundo e doloroso mergulho no passado. Quantos dos que eu amei, ou com quem simplesmente convivi, ali «descansam em paz...» A todos avoquei à minha saudosa lembrança. A todos dirigi uma breve e comovida saudação.
– Dizei-me, entes queridos. Afinal, que se passa do outro lado?
Nenhum deles me respondeu. Nem sequer a minha tia catequista, outrora tão segura daquilo que afirmava. Querida tia: afinal sempre recebeste na outra o prémio dos sacrifícios que fizeste nesta vida? Da virgindade, de que tanto te orgulhavas? Das quaresmas jejuadas a pão e água? Das longas horas de joelhos ou de terço na mão? Dos longos anos de catequista, de «Filha de Maria», de zeladora de altares? Afinal como é? O Sedielos sempre caiu «vestido e calçado no Inferno», como tu lhe vaticinavas, ou conseguiu salvar-se?
– Vai-te embora incréu, que já te não enxergo bem...
– Claro que não enxergas, querida tia. Nisso acredito eu. Mas não te zangues nem me dês com o fuso na cabeça, como tantas vezes fizeste enquanto me ensinavas a doutrina. Eu vou.
E retirei-me a pensar na minha tia catequista. Os terrores com que ela azedou a doçura da minha infância. Para ela, não havia escapatória possível. Ou penitência nesta vida, ou fogo eterno na outra.
À força de ouvir a minha tia a falar de penitência e morte, materializei estes dois conceitos em dois trastes que, ao tempo, adornavam a capela da minha aldeia: um esquife às cavalitas dum confessionário.
O esquife era do mais simples que imaginar se possa: quatro paus aparelhados em forma de catre. Mas o confessionário, com a sua rija estrutura de carvalho, base sólida, cornija trabalhada, meia porta com bambinela de veludo roxo e grade lateral, impunha respeito.
Lembro-me vagamente do último vizinho a ir para o cemitério de esquife. E guardo comigo a impressão de que um morto num esquife tem muito mais dignidade do que numa urna. Se fossem todos da minha ideia, repunha-se o uso do esquife.
Primeiro, acabava a vergonhosa especulação, para não dizer roubalheira, das funerárias. Segundo, a soberba rivalidade entre famílias, a ver qual delas arranja melhor «casaco de pau» para a última viajem do seu defunto. Se, como por aí se diz, «no nascimento e na morte, todos somos iguais», íamos todos igualitariamente de esquife. Aqui fica a proposta.
A ela ser aceite, os de Peireses tinham de arranjar outro esquife. Que o da minha infância, por falta de uso, não resistiu ao caruncho e foi parar à fogueira. Ficou apenas o confessionário, coisa sólida e soturna, destinada a coisas íntimas e sórdidas.
Como não tenho residência permanente em Peireses, na prática, só vou à capela em dias de funeral. E foi num desses dias que dei pela falta do confessionário.
– Agora as velhas já se não confessam? – perguntei.
– Confessam, porque não?
– O confessionário desapareceu...
– Agora as mulheres confessam-se à maneira dos homens: ajoelham-se ao pés do padre e despejam o saco.
– Ainda bem que a «igualdade entre os sexos» vai chegando à igreja. Mas que fizeram ao confessionário?
– Leiloaram-no. Creio que o arrematou o Sedielos.
Dias após este diálogo em família, entra-nos de rompante a nossa tia catequista porta dentro. Vinha esbaforida, congestionada, a benzer-se com ambas as mãos.
– Que lhe aconteceu, tia?
– Deixai-me que eu nem venho em mim. Acabou-se o respeito, o temor de Deus e da santa religião. Estamos na fim do mundo.
– Porquê, tia?
– Sabeis o que o Sedielos, esse hereje, fez ao santo confessionário de Deus?
– Que eu saiba, pô-lo na horta.
– E sabes tu para quê?
– Se resguardar da chuva, talvez.
– Para se resguardar da chuva, dizes bem. E sabes tu quando? Quando vaI a campo... Vede só que pecado, que profanação... Transformar o santo confessionário de Deus numa cagadeira... Aquele homem está vestido e calçado no Inferno...
– Discordo. O Sedielos limitou-se a manter na horta as funções para que o confessionário foi criado. Na capela aliviava a má consciência dos pecadores. Na horta alivia outra coisa...
– Cala-te pagão. Mal empregado o tempo que passei a ensinar-te a doutrina.
Por falar em tempo. Continua a chover. E que bem me está a saber a lareira.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 150 e ss.)

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