terça-feira, 16 de agosto de 2011

OS GAIOS

Pelo-me por uma sestinha.
Após o almoço, bem ou mal regado, nada para mim melhor que uma boa soneca no silêncio da casa – neste silêncio abençoado das nossas aldeias.
Hoje levantei-me bem disposto. Pronto para uma grande caminhada.
Saí em direcção ao norte, o que, em Peireses, significa em direcção ao Crasto, no enfiamento da Estrela Polar.
Estava calor, as searas quietas, as aves amodorradas à sombra das árvores.
Subi uma veiga de centeios, nesta época do ano a pedirem fouce, e ataquei uma encosta de mato maninho.
A minha intenção era ir até Fontelixandre, onde tive a alegria de ver, pela primeira vez, uma raposa aos grilos. Há que séculos isso vai.
Mas a encosta empina e o sol da tarde pesava.
A pedido das pernas, desisti de Fontelixandre e refugiei-me numa touça de carvalhos seculares.
Fui recebido pelo mau humor dos gaios:
– Gah, gah, gah!
– Cheira-vos a pólvora, gandaieiros?
– Na gandaia andarás tu. Nós ganhamos honradamente a nossa vida.
– Como pode isso ser, se vós, segundo os Evangelhos, não semeais nem colheis?
– Lérias. Quem nos faz o ninho? Quem nos choca os ovos? Quem nos cria os filhos? Quem os ensina a voar? Quem nos veste?
– Olha a grande coisa. Andais sempre com esse capote de pobre, mosqueado de remendos.
– E tu, velho cairrão que trazes as calças rotas de andares ao carvão?
– Oh, insolentes?
E agachei-me a uma pedra.
– Ora atira! Atreve-te!
– Se calhar, bicais-me?
– Põe-te a andar, velho cairrão, que já nos estás a assustar os filhotes.
– E onde estão eles?
– Isso querias tu saber.
– Se calhar como-os.
– Não seria a primeira vez. Sabes como ficaste conhecido nas crónicas dos nossos avoengos? O Papa Gaios.
– Papagaio? Essa tem graça. Não sou tão papagueador como isso.
– Deixa-te de trocadilhos e desaparece. Vá! Gah! Rah! Gai!
– Vou porque quero, não por vos ter medo. Ouviste, praguentos?
E voltei costas direito a um portal onde outrora eu sabia existir um caminho.
Esbarrei num tapume compacto de rascalhos, giestas, urzes, silvas.
Fui examinar a parede, dum lado e doutro.
No meu tempo de pastor, as paredes estavam sempre impecáveis. Agora, tudo no chão.
Hoje, para arrebater o gado, os lavradores limitam-se a lançar uns cordéis coloridos de inteira em inteira ou de árvore em árvare. As vacas tocam nos cordéis e recuam.
Para os humanos, os cordéis não são grande obstáculo.
Pior é o arame farpado, essa praga dos tempos modernos. Se um homem se descuida, deixa lá os fundilhos das calças, e, quando o Diabo está atrás da porta, retalhos da pele das nádegas.
Lá estava o maldito arame farpado.
Retrocedi, a examinar o tapume.
E foi então que reparei que a um canto, rente com o tranqueiro, havia uma espécie de túnel.
– Ora aí está – disse para comigo – Faço como os soldados em treino. Deito-me de ventre e rastejo.
Dito e feito, pus-me de gatas e enfiei a cabeça.
Primeiro, senti uma coisa fria na orelha. De seguida, qualquer coisa a apertar-me o gasganete.
Quis recuar. Tarde demais. Estava preso pelo pescoço.
Fui com as mãos, consegui libertar-me do cabresto, retroceder.
E, de barriga por terra, examinei atentamente a engenhoca: um arame de aço solidamente preso a um tronco por uma das extremidades e, na outra, arteiramente dependurada, uma ansa de nó corredio.
Sim senhor. Tinha ouvido dizer muita vez que este ou aquele vizinho apanhara um coelho, uma lebre, uma raposa, um porco-bravo, até um lobo, ou um veado, no laço. Mas nunca o tinha visto.
– Se alguém sabe que caí num laço de caçador furtivo, vai ser uma risota – murmurei.
Para já, os gaios batiam as asas e esvoaçavam de carvalho em carvalho numa grande galhofa:
– Ah, ah, ah! Gah, gah, gah!
Ameacei-os com a bengala:
– Atrevidos, insolentes, antipáticos! Nunca simpatizei convosco. Doravante, nem pintados...
Isto disse eu, num momento de mau humor.
No fundo, gosto de todas as aves que dão vida e alegria à nossa terra.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 147 e ss.)

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