S. Martinho de Anta, 18 de Agosto de 1979 – Mal cheguei, minha irmã, depois do relato das mazelas, alargou o rol das notícias e pôs-se a falar da morte recente de um graúdo local que andou connosco na escola. No seu estilo imaginativo, capaz de sugerir numa metáfora um começo de primavera (– Já parecem bem as camisas dos homens a reluzir na veiga… –), foi contando. E, quando dei por mim, estava a assistir compungido a toda a duração da tragédia, desde a hora fatídica do passamento até à solenidade das exéquias. Em dado momento a narradora desmediu-se:
– E olha tu que ia mais bonito do que era ao natural...
Com duas lágrimas sinceras dá por acabada a descrição. Recolhe apenas a moral da história:
– Qualquer dia...
Sem querer averiguar se insinuava a proximidade do seu próprio fim ou do meu, limitei-me a uma breve meditação contrita. Sempre lhe censurei asperamente a curiosidade insaciável, o vício inveterado de conhecer em todas as minudências as novidades da terra. E só agora me apercebia da injustiça cometida. Sem outras solicitações mentais, anos a fio à janela da solidão e observadora realmente excepcional de tudo onde punha os olhos, a única maneira de dar largas aos seus dons naturais era exercê-los naquele apertado espaço de vida, devassar até ao tutano a minguada realidade que a cercava. E o certo é que, nesse particular, não tinha rival. Nem o padre a batia, apesar do confessionário. Com a vantagem de o relato depois feito dos acontecimentos ser uma obra-prima de finura e pitoresco. Além disso; por quem Deus lhe mandava a verdade! Por mim! Bem vistas as coisas, que diferença havia entre nós dois? Que sou eu, afinal, senão um impenitente bisbilhoteiro do mundo, sempre confrontado com a existência das coisas e dos seres?
DIÁRIO (XIII), p. 101 e ss.
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