sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Miguel Torga – DIÁRIO (XIII)


Régua, 19 de Agosto de 1979 – Conheço os meus lugares comuns e, naturalmente, evito repetir-me. Mas não tenho medo de correr esse risco sempre que se trata de ser fiel às raízes e de as exaltar. Como escritor, prefiro fazê-lo no papel. Mas não hesito em expor-me aos quatro ventos da oralidade se porventura esse devotado amor a tanto me obriga. Foi o que aconteceu hoje aqui.

«Quando fui abordado para falar sobre o homem duriense no encerramento desta feira, fiquei indeciso. Tudo o que em mim há de esquivo, de informal e de desencantado mandava-me recusar. Outras razões ainda mais profundas, porém, teimavam que sim, que aceitasse o convite. O tema corria-me nas veias. E não é impunemente que se faz orelhas moucas aos argumentos do sangue. Filho, neto, bisneto e tetraneto de obscuros cavadores, carreiros e almocreves, que séculos a fio saibraram, sulcaram e palmilharam as encostas do Doiro, criado a ouvir a crónica deles e a de quantos os acompanhavam na via-sacra – e Deus sabe até que ponto ela era dolorosa –, atento, por conta própria, a um destino que sempre me pareceu exemplar no seu dramatismo, como poderia eu escusar-me a depor no tribunal severo do presente, pondo no meu testemunho letrado, o único a que me obriguei na vida, todo o calor e sinceridade de que sou capaz? Não tinha na mão nenhum lenitivo para suavizar o sofrimento que as palavras só podem denunciar, nenhum epíteto para acrescentar à nobreza de um nome que se basta na sua grafia. Mas tinha a ocasião de celebrar publicamente um Sísifo ao natural, que, ao invés do mitológico, símbolo infausto do eterno desespero, fez da esperança a justificação do seu martírio. E aqui estou a meditar em voz alta na história trágico-telúrica desse herói singular, escrita nas fragas com a tinta do suor. Herói modesto, despretensioso e proteico que, mal comido, mal bebido e mal agasalhado, aos rigores de um inverno de gelo e de um verão de fornalha, surriba, planta, enxerta, tesoura, poda, ergue, enxofra, sulfata, vindima, pisa e trasfega num afã sem descanso. Protagonista de um drama milenário, que já nos tempos de Roma representava, o seu palco é largo e majestoso. Basta olhá-lo do miradoiro de S. Brás, de S. Domingos da Queimada, de S. Leonardo de Galafura, do alto da quinta das Carvalhas, de Vilarinho de Cotas ou de S. Salvador do Mundo. Só quem não tiver sensibilidade e humanidade dentro de si é que ficará indiferente à beleza de panoramas sem comparação possível e à grandeza de um esforço incansável e criativo que os cultiva e arquitecta jardins suspensos na mais agreste paisagem de Portugal.
A hipocrisia capitalista, ardilosa como sempre tenta de há muito desfigurar o perfil verdadeiro desse titã hirsuto e esfarrapado que a todas as horas se desmede. Nos cartazes folclóricos, que cobrem as paredes turísticas e comerciais, os vindimeiros atestados levitam a caminho das dornas, as croças de colmo aquecem o corpo, não há sono nem cansaço nas lagaradas, ninguém morre abafado dentro dos tonéis, a espadela do barco rabelo é um leme sem peso, as cardenhas têm colchões de sumaúma, o magro caldo de feijões e abóbora rescende, as jornas são generosas. E quem neles bebe o cálice de vinho fino, que mesmo pintado apetece, julga que o néctar doirado mana das cepas por obra e graça da mãe natureza. Mas a verdade é bem outra, e a própria realidade se encarrega de desmascarar a mistificação. É ela, na sua crueza, que grita aos quatro ventos que o milagre é feito por quem, na fome e na miséria, mal a filoxera acabava de o prostrar se ergueu de ferro e pá na mão a repor os mortórios, mal a trovoada esbarronda a parede do socalco a levanta de novo, mal uma queima destrói a novidade começa a granjear a vindoira. Sem essa pertinácia obstinada, que a força dos elementos não vence nem a incompreensão dos poderes desanima, secariam as cubas nos armazéns de Gaia.
O Doiro necessita de ser finalmente olhado pela nação como o seu Olimpo sagrado, o chão bendito que produz a única riqueza de que somos senhores exclusivos: o Porto, que o mundo assim conhece e saboreia e imita em todas as latitudes sem nunca igualar. Mas esse carinho pátrio tem de começar pelo obreiro do prodígio, pelo oficiante de mãos calosas que espreme os xistos até os fazer ressumar. É ele, nunca presente nos salões dos congressos, nunca farto nos banquetes oficiais nunca tido nem achado nas reformas e nos decretos, que deve ser chamado à ribalta para expor as suas necessidades e formular as suas queixas. Para desdobrar diante dos olhos da justiça o sudário da sua crucificação. Porque se nas Santas Escrituras tudo começa pelo Verbo, no livro de pedrada nossa região bem amada a lição é outra. Aqui, no princípio era o homem. O homem duriense».

DIÁRIO (XIII), p. 103 e ss.

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