domingo, 7 de agosto de 2011

NARIZ DE PALHAÇO

Ando com o nariz tão vermelho, que todos me perguntam se me constipei, caí, ou me bateram. Um de mais confiança, gracejou:
– Andaste a meter o nariz onde não devias...
– Pudera.
– Nalgum sedeiro?
– Um ninho.
– De vespas?
– De pássaro.
– E levaste uma bicada?
– Nada disso.
E expliquei.
Na minha infância fartei-me de saquear ninhos. Hoje estou arrependido e sinto por mim uma grande revolta e por eles uma grande ternura.
Em finais de Abril descobri um de melro numa sebe marginal a um caminho solitário por onde, por acaso, ia passeando. Desde esse dia, vim seguindo, com um embevecimento quase paternal, a concretização do milagre: a postura dos ovos, o choco dos mesmos, o nascimento dos filhotes e respectiva plumagem. Todos os fins-de-semana passava por lá a perguntar à melra mãe:
– Então? Como vai a prol?
– Saudável e a crescer a olhos vistos. Ora aproxima-te e espreita. Com jeito, para os não assustares.
Eu espreitava e eles, quatro ao todo, tomando-me por um dos pais com o cibato, abriam grandes bicos, numa sofreguidão de crianças mimadas à vista do seio materno.
– O criador dos melros os guarde!
Afinal, a minha súplica não foi ouvida. No último sábado encontrei o ninho vandalizado.
Estava eu a desabafar a minha tristeza com o meu irmão mais novo, diz ele:
– Já que gostas tanto de ninhos, vai ver se descobres de que pássaro é um que está em Ferreiros, num carvalho da Touça do Fontenova.
– Num carvalho, deve ser de gaio.
– Os de gaio, conheço-os eu bem. Aquele é muito maior.
– Não digas mais. Vou lá de tarde.
Mas a Touça do Fontenova está um emaranhado intransponível de brótegas, silvas, tojos, urzes, giestas, galhos secos. Nem um lobo acossado se aventuraria a passar por lá.
Fui de volta, por uns lameiros de feno ribeirinhos ao Regavão, nariz em riste.
Por fim lá consegui avistar o ninho. O mano tinha razão. Aquilo de gaio não é. Muito maior. Quase do tamanho dum cesto barreleiro. De que será? – perguntei a mim próprio. Degralha? Cegonha? Ave de rapina? Não saio daqui enquanto não descobrir.
E para ali fiquei especado, nariz no ar, à espera de que o pássaro aparecesse. Um sol abrasador, de trovoada, batia-me de chapa na cara. Mas eu não arredava pé. Se está habitado, dizia para comigo, tarde ou cedo, o habitante há-de aparecer.
Nisto passa um corvo e solta uma risada escarninha:
– Que estás aí a fazer, palhaço?
– Palhaço, porquê?
– Já reparaste no teu nariz?
Debrucei-me nas águas límpidas e paradas duma represa, entre lameiros de feno. Realmente...
Ao Pinóquio, crescia-lhe o nariz quando mentia.
O meu fica vermelho de tanto o levantar para as maravilhas da nossa terra.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 143 e s.)

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