As voltas que o mundo dá... As voltas que eu hoje dei em Montalegre em busca dum lugarzinho onde estacionar o carro…
Antes tivesse ficado cm casa, ou ido a pé, como antigamente.
Comecei a romper cardas de socos pela Rua Direita há uns bons setenta anos. Nesses prístinos e áureos tempos do arroz de pataco e das estrumeiras e dos porcos na rua, não se via um automóvel em Montalegre. Era terra de burros, salvo seja. Os carros eram a excepção. Havia o Ford do Dr. António, um calça arregaçada de raios de metal nas rodas, como as bicicletas, o Peugeot, ou coisa que o valha, do Dr. Landeiro, um dois lugares cuja traseira lembrava a dum pato pintado de preto, três ou quatro chanfalhos de carga, num dos quais, o do Pascoal, homem da Rosária, eu me estreei como passageiro numa viagem nocturna e inolvidável de Gralhós às Casas Novas.
Lembro-me também dum calhambeque do António Ferreiro, pelo menos era ele que o guiava, espécie de burro vadio em que os rapazes gostavam de cavalgar. Digo cavalgar porque o chaço não tinha tejadilho e os rapazes que não coubessem nos assentos iam a cavalo nos ladrais.
Disseram-me que, para o porem a trabalhar, tinham de lhe acender uma fogueira debaixo do motor. De início não acreditei. Mas depois de assistir a uma discussão entre vizinhos numa taberna, fiquei na dúvida, Dizia um deles:
– Tenho lá um touro que é o raminho. Seja a turrar, seja a cobrir, não há no concelho boi para ele.
– Cala-te para aí que o teu boi não presta para nada.
– Ai sim? Mas outro dia bem mo vieste pedir para a tua almalha?
– E sabes o que aconteceu? Chegou lá e nicles.
– Não acredito!
– Podes acreditar. Para que ele se resolvesse, tive de lhe aquecer os tomates com um fachuco de palha aceso.
Donde se infere que, para um bom arranque, não há como um bom aquecimento. Com os tomates quentes, o boi do meu vizinho atirava-se às vacas. Com o motor quente, o calhambeque do António Ferreiro atirava-se às estradas.
Mas aí é que os trabalhos começavam. O bólido não tinha buzina nem travões. Para darem sinal nas curvas, os rapazes, adrede munidos cada qual com sua tranca, batiam nas latas. Para travar nas descidas, fincavam os paus no macdame, à maneira de remos que ciam.
Mas nem sempre a manobra dava resultado. Um ano resolveram ir à Festa de S. Mateus a Fírvidas. Ao passarem em Gralhós, onde a estrada desce um pouco, atropelaram um porco e seguiram. Mas o Zé Cabra, dono da vítima, não esteve pelos ajustes:
– Deixa que à volta...
– À volta o quê? – retrucou-lhe o Joaquim da Venda.
– Obrigo-os a parar.
– Vê lá no que te metes. Olha que o carro não tem travões...
– Eu arranjo-lhos.
E o Zé Cabra, que explorava uma taberna, mobilizou os vizinhos, tudo gente nova e reinadia e disse-lhes que, se queriam beber um copo, fossem à eira, carregassem um carro de palha e lho trouxessem.
Os rapazes assim fizeram. Carregaram um carro de palha, muito trazeiro, e colocaram-no à esquina, rente com a valeta, de redacu para a estrada.
– E se escurece? Como é que nós vamos distinguir o automóvel? – lembrou o Pinhão.
– Eles têm de vir de dia, porque a capoeira não tem luzes – esclareceu o Terré.
– Lá vêm eles, catano.
Num ápice, os rapazes de Gralhós empurraram o carro da palha para o eixo da estrada e empinaram-no, de modo a que os da Vila se não enfiassem debaixo dele.
– Travai! – gritou o António Ferreiro, desligando o motor.
Os passageiros meteram trancas a fundo. Mas não puderam evitar que o calhambeque mergulhasse em cheio no palhuço. Saíram de lá como bichos-palheiros, a sacudir as praganas dos olhos e o sangue das ventas.
Apanharam tal susto que, durante muito tempo, não quiseram saber do carro para nada.
Quando o foram a pôr de novo a trabalhar, por mais fogueiras que lhe acendessem debaixo do motor, não pegou. Então o António Ferreiro pôs-lhe um burro à frente e fez dele uma carroça...
Bons tempos em que Montalegre era terra de burros...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 156 e ss.)
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