Neste fim-de-semana matei o porco. Ou antes: mandei-o matar. Eu vim apenas à desmancha. Ao vezo da assadura, das filhós de sangue, do sarrabulho, do fígado, da coiracha, dos rojões do redenho e da costela, do cozido com pernil, chouriço e salpicão do ano passado e, delícia das delícias, a tronchuda barrosã, nesta época do ano, coisa divina.
Outrora, a matança dos porcos era um espectáculo. Uma espécie de tourada, onde a praça era o pátio e, em vez de touros, se lidavam porcos.
Pegar um cevado de cento e cinquenta a duzentos quilos, não era para rapazes. Requeria habilidade e muito pulso. Se não, em vez de aplausos, vinham os apupos e as gargalhadas do público.
Hoje a matança perdeu toda a espectaculosidade. É feita por mercenários que chegam, deitam um aziar ao focinho do bicho e levam-no para onde querem. Perdeu-se o melhor da festa que era agarrar o porco à saída do covil.
Montava-se desta maneira o cenário. Dois, a que poderíamos chamar o porteiro e o rabejador, iam dentro. Os outros postavam-se fora em duas filas paralelas uma à outra e perpendiculares à porta, perna à frente perna atrás, mãos em garra, respiração suspensa, olho atento. Junto ao banco, mangas arregaçadas, faca de três palmos em punho, o sangrador.
Quando tivesse o porco bem seguro pela cauda, o rabejador fazia sinal ao porteiro. Este abria a porta de golpe. O porco investia.
Os cabeças de fila filavam-no pelas orelhas. Os restantes por ronde podiam.
A ovação aos pegadores media-se pela rapidez com que domavam a fera e a estendiam no banco. A do sangrador, pela rapidez com que o porco morria.
Se conseguissem uma boa marca, todos punham cara de páscoa. Se algum dos pegadores fosse cuspido, o porco se escapulisse ou demorasse a morrer, todos punham cara de enterro.
Num caso ou noutro, havia sempre gargalhadas, comentários, chistes.
Divertimento que era, a matança prestava-se a brincadeiras, algumas de mau gosto, como aconteceu comigo.
Andava eu nos estudos, pedi a meu pai que fizesse coincidir a matança dos porcos com as férias do Natal. Passei o primeiro período a sonhar com a matança. E, no dia, tirei o casaco e fiz questão de participar.
– Está quieto que ainda te aleijas – disse minha mãe.
– Qual aleijo, qual carapuça. Venham de lá os bichos.
E peguei, ali, como os homens. Quero dizer: como os aselhas.
Eram seis os cevados naquele ano. Faltava o último, por sinal um dos mais taludos.
– Agora, o do rabo, é o Banto – disse o meu tio António, Deus lhe perdoe (ou agradeça) as pirraças que me fez.
Lisonjeado com a promoção, fiz peito e entrei na corte. O porco, excitado com os gritos dos companheiros que o haviam precedido, farrancava bravo. Vi-me perdido para lhe deitar a unha. Foi preciso o meu Tio ir dentro e orientar a manobra:
– Isso mesmo. Agora faz um laço à volta da mão.
Dei duas voltas de rabo à mão esquerda, pus a direita por cima e disse:
– Podeis abrir.
Eles abriram... mas não pegaram...
O suino investiu comigo a reboque pátio fora, rua acima. E toda a malta atrás, a surriar-me, a rir-se, à espera que eu largasse ou me estendesse ao comprido. Mas eu não larguei nem me estendi.
O ti Carancho, que vinha descer a rua com um carro de lenha para aquecer o forno, viu aquilo e correu, aguilhada em varrimenta:
– Eh! Eh ! Lá p'ra trás! Ou julgavas que fugias à faca?
O porco deu meia volta, rua abaixo, pátio dentro, decerto no instinto de se refugiar no covil. Mas, de tanto correr e rebocar-me, vinha cansadinho de todo. Foi só tombá-lo no banco.
E só então eu consegui desfazer a laçada do rabo do porco à volta da mão, que sangrava e doía.
– Sim senhor!
– Homem de pulso!
– E de perna! Julguei que afocinhava, mas aguentou-se bem...
– Uma vantagem de que nem todos seriam capazes...
O que eles não sabiam, e que eu só hoje confesso, é que não larguei o cevado porque, nos apertos em que me vi, não fui capaz de desfazer o laço de rabo à volta da mão.
E assim nascem os heróis...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 153 e ss.)
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