quinta-feira, 11 de agosto de 2011

ÍCARO DESASADO

Ontem de tarde pus um chapéu de palha na cabeça, agarrei numa bengala e fui por aí fora embalado na beleza da paisagem, no perfume do ar, na alegria dos pássaros, na paz do Senhor e dos campos.
Ia lá numa calhelha solitária entre salgueiros floridos, começo a ouvir o ruído dum motor. Pus-me a olhar em volta, a ver donde aquilo vinha. Mas não via nada. Apenas o vulto dum homem, cuja distância me não permitia reconhecer quem fosse, a caminhar na minha direcção. E o ruído do motor, um ruído esquisito, de engrenagens mal lubrificadas ou demasiado aquecidas, cada vez mais perto, cada vez mais intrigante.
A uns cinquenta metros, reparei que o homem trazia uma máscara de tela a tapar-lhe a boca e o nariz, um bombo às costas, que lhe sobressaía para a nuca e os ombros, e um tubo na mão, assim a modos de cano de reiuna de pedreneira.
Era um meu vizinho e amigo. Deu as boas tardes através da máscara e continuou. E eu ali especado a olhar para ele.
A uns cinquenta metros, voltou-se, muito divertido com o meu espanto. E quando eu esperava que este Ícaro de nova espécie levantasse voo, torceu à esquerda, portal duma cortinha dentro e começou a pulverizar as batatas com o remédio dos escaravelhos. Afinal, a engenhoca era aquilo mesmo. Um pulverizador mecânico ligado em ponto morto.
Esclarecido o enigma, estuguei o passo, na pressa de me libertar daquele ruído deveras incómodo para quem, como eu, ama o silêncio.
Transpus uma colina por um carreiro ladeado de giestas amarelas que, nesta época do ano, vão perdendo a flor e o viço, depois uma chã de terras de semeadura, a seguir uma carga de carvalhos e lameiros de feno, de novo uma veiga de searas entregues à carícia do sopro da aragem. Deixei de ouvir o motor. De novo o silêncio. Apenas um terruterru de rolas ao longe e, mais perto, o canto familiar e antigo da corcolher.
O caminho, outrora muito trilhado pelos extintos carros de bois, hoje abandonado, afundava e desaparecia sob tufos de vegetação, por entre a qual as silvas estendem as garras.
Ia eu muito concentrado a afastá-las com a bengala, porque as tipas mordem sem dó nem piedade, eis senão quando, num cotovelo dum muro em ruínas, oiço pela frente um misto de terrintim de campainha e riso feminino. Mal tive tempo para me atirar para o talude, passa uma cachopa de bicicleta, cabelos ao vento, pés fora dos pedais, num equilíbrio precário. E logo uma segunda. E ainda uma terceira.
Deram tento da minha atrapalhação, saudaram alegremente e desapareceram, muito divertidas com o corta-mato.
– Com esta é que eu não contava – disse para comigo, enquanto sacudia as calças. Primeiro um homem que lembrava um boneco de corda. Agora três raparigas que lembram andorinhas em voo rasante.
Surpresas da nossa terra.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 145 e s.)

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