quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A PRINCESA

Em frente à minha janela, há uma eira. E, ao fundo da eira, um antigo palheiro hoje em ruínas.
Quem olha para ele, julga-o um montão de pedras mortas. Mas está enganado. Mora lá uma princesa encantada sob a forma duma poupa.
Quando, há anos, a vi pela primeira vez, perguntei-lhe se era alguma odalisca escapa do harém dalgum sultão.
Ofendeu-se toda. Que era uma princesa. Descendente, em linha directa, da Rainha de Sabá.
Desfiz-me em desculpas.
Desde então, ficámos bons vizinhos e amigos.
Quando o tempo arrefece e ela se vai embora, deixa-me saudades.
Quando as neves derretem e a temperatura sobe, aguardo, com ansiedade, a sua chegada.
Este ano chegou em meados de Abril. Perguntei-lhe onde havia passado o Inverno?
– Na Arábia Saudita, antigo Reino de Sabá.
– Cuja Rainha visitou Salomão?
– Se a Bíblia não mente. Quanto a mim, duvido.
– Porquê?
– Os Judeus são fracos vizinhos…
– Não me digas que és anti-semita?
– Não concordo com o que os Judeus estão a fazer aos Palestinianos.
– Nem eu. Mas olha que os Palestinianos também não estão isentos de culpa.
– Coitados. Vão se defendendo como podem.
– Quer não que aqueles ataques suicidas traduzem um fanatismo inadmissível à luz do século XXI.
– Discutirei esse assunto contigo noutro dia. Agora tenho umas vidas a tratar.
– Muito gosto em ver-te.
– Igualmente.
Ontem encontrei a Princesa de bico torcido, muito encolhida no buraco duma parede.
– Então vizinha? Como te vai a vida?
– De mal a pior. Já reparaste neste frio? A nevar em Maio! Que disparate. Nem uma poupa pode fazer o ninho...
– Mas tu não deixas o ninho feito dum ano para o outro?
– Deixo. Mas há sempre umas limpezas a fazer, uns estragos a reparar.
– Ouve lá? Como é que vós, as poupas, pássaros tão asseados, com tão bom aspecto, com esse ar de princesas mouriscas, utilizais excrementos humanos na confecção dos ninhos?
– Por antídoto.
– Traduz.
– Ainda há pouco citaste a Bíblia. Se a leste, deves estar recordado do que ela diz a respeito da onda de perfumes em que a Rainha de Sabá submergiu os Hebreus. «Nunca as raparigas de Israel cheiraram tão bem» – diz o livro Sagrado.
– E que tem a ver o cu com as calças?
– Tem a ver que nós, as poupas de Sabá, sentindo-nos envenenadas com tantas substâncias aromáticas, procurássemos um antídoto para tal veneno. Ora para neutralizar um bom perfume, nada melhor do que um bom pivete...
– Ó Princesa! Cala-te para aí com isso que já me sinto enojado...
– Então desanoja-te que nós, agora, já não utilizamos excrementos humanos.
– Porquê?
– Falta de matéria-prima. Antigamente, toda a gente ia atrás duma parede e limpava o cu a uma pedra. Agora ninguém dispensa o quarto de banho e o papel higiénico.
– Ainda bem.
– Ainda mal, digo eu. Quero consolidar o ninho e não tenho com quê.
– Arranja um substituto.
– E tu julgas que uma pessoa muda de hábitos assim dum dia para o outro?
– Não sei que te faça.
– Sei eu.
– Diz.
– Aliviavas-te aí na eira.
– Oh, Princesa! Bem gostava de te ser prestável, mas não posso.
– Porquê?
– Já me não aguento nas pernas...
– Agarras-te a um arbusto.
– E se o arbusto parte e eu abafo o crianço? Não arrisco...
– Estás a ser medricas.
– Antes medricas do que merdícula.
– Deixa-te de trocadilhos e faz a vontade à tua vizinha.
– Desculpa Princesa, mas não insistas. E mudemos de assunto que este já cheira mal. Diz-me uma coisa: é mais bonito Barroso ou o Reino de Sabá?
– Ah! Quanto a isso, nem é bom falar. Barroso é muito mais bonito...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 140 e ss.)

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