Passei três quartos do
século XX a olhar para o XXI como quem olha para uma miragem inacessível. Afinal,
cá estou eu às portas de 2007.
Boa altura para uma
pausa na jornada e uma vista de olhos ao balancete da minha vida. Que tristeza!
Sonhei mundos e fundos e, contas feitas, acabo de mãos vazias.
Porque teria eu
fracassado?
Pedi à minha amiga
Cassilda, que só me leva cinco anos e passa por mulher de virtude, que me lesse
o responso e me dissesse porque é que eu, que tanto prometia em rapaz, nada
tenho para dar em velho.
A Cassilda, que estava
sentada numa trípode em forma de mocho à lareira, saiote puxado para os joelhos
e canelos nus manchados de murras, pôs as mãos ao alto e os olhos em branco,
ou, melhor dizendo, em amarelo, porque sofre de triz crónica, e assim esteve
por espaço de meia hora a bichanar o responso.
Por fim regressou do
transe, toda ela estremeceu numa descarga cavernosa de flatulências gástricas e
disse:
– Isso foi praga que
te rogaram.
– E quem é que me ia
rogar uma praga se eu nunca fiz mal a ninguém?
– Deixa ver se
descubro.
E a menina Cassilda,
porque ainda se mantém solteira, embora virgem não direi, nem ela, honra lhe
seja, invocou de novo o oráculo e, com um novo alívio de flatulências
encruadas, disse:
– Não foi só uma praga
que te rogaram. Foram dúzias deias.
– De quem?
– De velhas. E olha
que de velha que roga praga, «mulher que sabe latim, mula que faz him e ovelha
que faz mé, libra nós e domine».
– Mas eu nunca fiz mal
a velha nenhuma!
– Não. Tu alguma lhes
fizeste. Há muitos anos, que isto são pragas velhas, as piores de todas.
– Quanto te devo,
Cassilda?
– Nada. Fica em paga
da roca que uma vez me deste.
– Não me lembro.
– Que te não lembras?
Andávamos ambos com a rês no monte e tu passavas o tempo a fazer rocas que
depois vendias na feira de Montalegre a cinco tostões cada. Um dia ofereceste-me
uma com um coração varado por uma setra
aberto a ponta de canivete no cabo, por sinal tinto de sangue porque tu, em vez
de atirares a navalha ao pau, atiravas com ela aos dedos. Não te lembras?
– Estou a lembrar-me.
Ainda tens essa roca, velha e querida amiga?
– Rais-ta parta! Desfez-se
à segunda vez que tentei carregá-la…
– Não digas mais, Cassada.
Já sei quem me rogou as pragas.
– Quem?
– As velhas que me compraram
as rocas…
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 43 e s.)
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