A sombra do pai (2)
Poucas
páginas antes, o escaravelho Gregório Samsa ainda
havia articulado penosamente as últimas palavras que a sua boca de insecto fora
capaz de pronunciar: «Mãe, mãe». Depois, como numa primeira morte, entrou na
mudez de um silêncio voluntário, senão obrigado pela sua irremediável
animalidade, como quem teve de resignar-se definitivamente a não ter pai, mãe e
irmã no mundo das baratas.
Quando por fim a criada varrer para o lixo a carcaça ressequida em que Gregório
Samsa terminará transformado, a sua ausência, daí em diante, só servirá para
confirmar o esquecimento a que os seus já o tinham votado. Numa carta de 28 de
Agosto de 1913, Kafka
irá escrever: «Vivo no meio da minha família, entre as melhores e mais amorosas
pessoas que se pode imaginar, como alguém mais estranho que um estranho. Com a
minha mãe, nos últimos anos, não falei, em média, mais que vinte palavras por
dia, com o meu pai jamais troquei mais que as palavras de saudação». Será
preciso estar muito desatento à leitura para não perceber a dolorosa e amarga
ironia contida nas próprias palavras («Entre as melhores e mais amorosas
pessoas que se pode imaginar») que parecem estar a negá-la. Desatenção igual,
creio, seria não atribuir importância especial ao facto de Kafka haver proposto
ao seu editor, em 4 de Abril de 1913, que os relatos O Fogueiro (primeiro capítulo
do romance América), A Metamorfose e A Sentença
fossem reunidos num único volume com o título de Os Filhos (o
que, aliás, só muito recentemente, em 1989, viria a suceder). Em O Fogueiro,
«o filho» é expulso pelos pais por ter ofendido a honra da família ao
engravidar uma criada, em A Sentença
«o filho» é condenado pelo pai a morrer por afogamento, em A Metamorfose «o filho» deixou
simplesmente de existir, o seu lugar foi tomado por um insecto… Mais do que
a Carta ao Pai, escrita
em Novembro de 1919, mas que nunca viria a ser entregue ao destinatário, são
estes relatos, segundo entendo, e em particular A Sentença e A
Metamorfose, que, precisamente por serem transposições literárias em que o
jogo de mostrar e esconder funciona como um espelho de ambiguidades e reversos,
nos oferecem com mais precisão a dimensão da ferida incurável que o conflito
com o pai abriu no espírito de Franz Kafka. A Carta assume, por assim dizer, a forma e o tom de um libelo
acusatório, propõe-se como um ajuste de contas final, é um balanço entre o deve
e o haver de duas existências enfrentadas, de duas mútuas repugnâncias, pelo
que não se pode rejeitar a hipótese de que se encontrem nela exageros e
deformações dos factos reais, sobretudo quando Kafka, no final do escrito,
passa subitamente a usar a voz do pai para se acusar a si mesmo… Em O Processo, Kafka pôde
desfazer-se da figura paterna, objectivamente considerada, mas não da sua lei.
E tal como em A Sentença o
filho se suicida porque assim o tinha determinado a lei do pai, em O Processo é o próprio acusado
Josef K… que acabará por conduzir os seus algozes ao lugar onde será
assassinado e que, nos últimos instantes, quando a morte já se vem acercando,
ainda dará por si a pensar, como um derradeiro remorso, que não tinha sabido
desempenhar o seu papel até ao fim, que não tinha conseguido poupar trabalho às
autoridades… Isto é, ao Pai.
José Saramago, O CADERNO
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