Há dias um familiar
perguntou-me:
– Que queres de prenda
de Natal?
– Um quebra-nozes para
pinhões.
– Não sei o que é.
– Nem eu.
– Mau.
– Não te zangues. Eu
explico.
Na minha infância
aldeã não havia Árvores de Natal,
sapatinhos na chaminé, ou coisas dessas de gente citadina.
A única prenda com que
nós, os miúdos, podíamos contar, eram os pinhões.
Uma pinha por cabeça
ou, em tempos de mais carestia, uma para dois, que nós éramos oito.
Um ano por outro, avezávamos
um suprimento trazido pela tia Albertina, irmã de minha mãe, casada em Fírvidas,
onde, ao tempo, havia o único pinheiro manso das sete léguas em redor.
E era um ver quem mais
se aviava a esquentar a pinha ao lume, a virá-la dum lado e doutro, à espera
que ela se risse e mostrasse os dentes, que nós lhe íamos extraindo e dispondo
em eirado, na pedra do lar.
– Quantos pares rendeu
a tua?
– Setenta e cinco!
– A minha, oitenta e
três!
Debulha feita, começava
a jogatina. O método mais vulgar era o par
ou pernão. Estou a lembrar-me da história dum garoto que, bolso cheio de
pinhões, saiu para a rua à procura de adversário. Apareceu-lhe um gargajola
bastante mais velho que o desafiou para o par
ou pernão. Mas o garoto ainda nem sequer sabia contar. Perguntava: «Para o
par ou pernão?». O outro respondia par.
Ele mostrava. Era ímpar. Mas o gargajola dizia: Par. Bota cá. Agora sou eu a perguntar. Par ou penão? O garoto respondia:
par. Estava certo. Mas o gargajola
enganava-o: pernão. Bota cá. Em breve
o garoto estava sem pinhões. Foi para casa choramingar. A mãe deu-lhe outra
pinha. Ele debulhou-a e desceu de novo à rua. O gargajola acorreu:
– Vamos jogar?
– Está bem. Mas ao bota cá, bota cá, não quero!
Além do par ou pernão, havia o rapa e o arrebindai-ma. O rapa, toda a gente sabe
o que é. Arrebindai-ma, nem todos saberão.
Era assim. O primeiro
jogador ocultava um certo número de pinhões entre a mão aberta e uma tábua e
dizia:
– Arrebindai-ma?
O segundo replicava:
– Abri a mão e dai-ma.
Num gesto rápido, o
primeiro levantava um pouco a mão e escondia de novo. O segundo tinha de adivinhar
quantos pares eram. Se errasse, repunha a diferença.
Passei noites inteiras
a disputar o arrebindai-ma com um meu
vizinho e colega de instrução primária, mestre em trapaças.
Num dia em que estava
a perder, ele colocou, num arreganho de vingança, todos os pinhões que tinha em
cima do escano, cobriu-os com as mãos ambas e disse:
– Arrebindai-ma?
– Abri a mão e dai-ma!
Ele mexeu apenas os
dedos.
– Cento e quarenta e
quatro pares – disse eu.
Uma das trapaças mais
frequentes do meu parceiro consistia em esconder um ou dois pinhões entre as
pregas dos dedos e retê-los ou deixá-los cair conforme lhe conviesse.
Exige-lhe que
mostrasse as mãos a ver se estavam limpas.
– Podes contar.
Ele começou a
contagem, vagarosamente, sempre melúrias.
Ao aproximar-se dos
cento e quarenta, apercebeu-se de que eu tinha acertado e perdeu a cor:
– Estou que me
enganei. Volto atrás.
E, sub-repticiamente,
com o cotovelo, ia rolando os pinhões para a borda do escano. Mas eu estava
atento:
– Não sejas batoteiro!
– Batoteiro, eu?
– Julgas que eu não
vejo? Apanha os pinhões, não te faças andrezo.
Havia uns quatro no
chão.
– Oh! Estes não faziam
parte da jogada…
– Faziam, que eu bem
os ouvi cair.
– Estás maluquinho.
– Nunca estive tão
fino. Conta direito.
A disputa foi renhida.
Mas os cento e oitenta e oito pinhões vieram comigo.
Não é por me gabar,
mas cheguei a ser imbatível na arrebindai-ma?
De modo que, finda a safra, ficava sempre de saco cheio. E só me restavam duas
saídas: guardá-los ou comê-los.
Nada fácil, quebrar um
pinhão. Um dia, irritado com um mais refractário ao golpe duma pedra, fui-me a
ele com um martelo. O lafrau furtou-se e eu esborrachei a cabeça do indicador
esquerdo.
Quando me viu a escaincar,
o tio António, irmão e afilhado do meu pai, fingiu-se muito condoído e consolou-me:
– Deixa estar, que
hei-de trazer-te da feira um quebra-nozes para pinhões.
E eu fiquei à espera.
De vez em quando lembrava-lhe:
– Ó tio? O meu
quebra-nozes para pinhões?
– Já o encomendei a um
ourives de Chaves. Mas aquilo é objecto de muita obra e feitio. Aguarda.
E eu especulava para
comigo: encomendado a um ourives? Então deve ser de prata… Ou de ouro?
Mas a encomenda nunca
mais chegou.
Anda por aí uma peça
de teatro em que dois indivíduos passam a vida «À Espera de Godot».
Eu passei a minha à
espera dum quebra-nozes para pinhões.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 40 e ss.)
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