Um terceiro deus
Creio que as
teses de Huntington
sobre o «choque
de civilizações», atacadas por uns e celebradas por outros aquando do seu
aparecimento, mereceriam agora um estudo mais atento e menos apaixonado.
Temo-nos habituado à ideia de que a cultura é uma espécie de panaceia universal
e de que os intercâmbios culturais são o melhor caminho para a solução dos
conflitos. Sou menos optimista. Creio que só uma manifesta e activa vontade de
paz poderia abrir a porta a esse fluxo cultural multidireccional, sem ânimo de
domínio de qualquer das suas partes. Essa vontade talvez exista por aí, mas não
os meios para a concretizar. Cristianismo
e islamismo continuam a
comportar-se como inconciliáveis irmãos inimigos incapazes de chegar ao
desejado pacto de não agressão que talvez trouxesse alguma paz ao mundo. Ora,
já que inventámos Deus e Alá, com os desastrosos
resultados conhecidos, a solução talvez estivesse em criar um terceiro deus com
poderes suficientes para obrigar os impertinentes desavindos a depor as armas e
deixar a humanidade em paz. E que depois esse terceiro deus nos fizesse o favor
de retirar-se do cenário onde se vem desenrolando a tragédia de um inventor, o homem,
escravizado pela sua própria criação, deus. O mais provável, porém, é que isto
não tenha remédio e que as civilizações continuem a chocar-se umas com as
outras.
José Saramago, O CADERNO
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