quinta-feira, 23 de agosto de 2012

As águas da biodiversidade


Biodiversidade? O tradutor hesitou. O esgar no rosto traduzia o esforço para encontrar no léxico do xironga um equivalente para biodiversidade. Traduziu por elefantes. Depois, emendou: os bichos. Sentados no chão, os camponeses não disfarçaram a desconfiança. Fossem elefantes, fosse bicharada o assunto merecia um pé atrás. Então, e as pessoas? O tradutor encontrou ali uma saída e disparou: sim, as pessoas, os bichos, a terra, tudo isso em conjunto. E reforçou as palavras com um gesto fechado e redondo.
Era a mensagem que trazíamos para a gente de Machangulo. O lugar fica próximo de Maputo, a não mais de uns cinquenta quilómetros. Mas a vida ali decorre não apenas longe da capital. Decorre num outro mundo. Esse outro mundo, ali mesmo na ilharga da grande cidade de Maputo, é uma das regiões menos desenvolvidas do país. Estradas há poucas, escolas pouquíssimas, postos de saúde quase nenhum. Na ausência completa de transportes, os camponeses percorrem a pé distâncias incalculáveis. O centro de gravidade das suas vidas não é realmente a capital. Nem é dentro de Moçambique. Eles olham para o Sul, para a Africa do Sul, para o Kwazulu-Natal. É lá que vendem produtos, é lá que vão buscar trabalho. É de lá que vieram os seus antepassados aquando das migrações nguni. Muitos falam zulu, poucos falam português.
A reunião em que participei fazia parte de um trabalho longo para elaborar o plano de gestão do distrito de Matutuíne, a região mais meridional da costa de Moçambique. Lá no extremo Sul, brilha as Pontas do Ouro, de Mamoli e de Malongane. Depois, mais nada brilha. Ou brilha apenas numa outra, mais oculta, dimensão. E lá estávamos nós, biólogos e outros, tentando trazer para o papel a infinita complexidade daquele quotidiano. O nosso desafio maior era encontrar na biodiversidade razões para começar programas geradores de riqueza, pontes com a modernidade. De modo a que a tal biodiversidade transitasse de conceito para semente. E, no final, germinasse isso que se chama de desenvolvimento.
Os especialistas, vindos de Maputo, olhavam para o calendário, com a angústia do tempo. Os experts, como gostam de ser chamados, estão sempre cheios de pressa. A mim, deleitavam-me os intervalos do trabalho. Sentado na margem de uma das muitas lagoas, numa dessas longas tardes, não dei conta do entardecer. Eu estava como que embriagado pela extraordinária beleza do local. As dunas cobertas de um verde intenso simulavam um oceano imóvel. O fundo dos vales almofadava a dormência de lagoas de cores diferentes. Van Gogh estaria aqui mais sentado do que eu. E produzindo mais. E aqui, em Matutuíne, que mora uma das regiões mais ricas de Moçambique. Rica em diversidade de espécies e afortunada em paisagens que capricham com o mar em espelho.
Nessa tarde, deixo-me amolecer na preguiçosa sensação de princípio do mundo, como se por detrás daquelas dunas ainda estivessem chegando os deuses para criar o Universo. Os deuses não teriam nem a pressa nem o ar solene dos consultores da capital? O meu lugar não estaria, afinal, tão longe do divino. Para a população local, aquela lagoa era sagrada. Ali era interdito pescar. Nas suas margens, todos os anos, no início de Fevereiro, se bebia ucanhu, a bebida fermentada que celebra as colheitas.
O som metálico de panelas chocalhando me despertou. O que se passava? Mulheres e homens pareciam apostados em desfazer a tranquilidade. E estavam. Produziam barulho para afugentar os hipopótamos. Ainda os vi, pachorrentos, parados no capinzal a avaliar os riscos de se aventurarem nas machambas dos camponeses. Um dos homens aproximou-se de mim. Trazia na mão folhas secas de palmeiras com as quais ia ateando pequenas fogueiras. Panelas e fogo se reforçavam no serviço de afastar os paquidermes. O homem aproveitou o momento e atirou-me:
Está a ver? Ainda vocês chegam aqui para proteger bichos…
Não respondi. Seria de pouca valia a minha argumentação. De pouco valeria dizer que animais e pessoas podem combinar modos de conviver e produzir vantagens recíprocas. O camponês escutaria com a habitual educação e a paciência de milénios. Mas, interiormente, ele permaneceria ancorado nas suas razões. O que precisamos são exemplos, modelos práticos que comprovem como as ideias funcionam. E esses modelos custam tempo. Os consultores não possuem tempo.
Na manhã seguinte, despertei com a luz do Sol. Do ponto alto em que montara a minha tenda, podia ver-se água pelos dois lados. Do lado interior, as águas paradas da baía de Maputo, com a ilha da Inhaca e o amplo estuário do rio Maputo. Do lado exterior, o infinito do Índico, com seus azuis mais profundos. Dirigi-me ao edifício onde prosseguia o nosso encontro, quando alguém me avisa que a biodiversidade passou por ali de madrugada. «A biodiversidade?», perguntei. Responderam risos. Tinham sido os elefantes, essa enorme manada que sobreviveu à guerra e à caça furtiva. Estão ali desde sempre, renovando o chamado Corredor do Fúti que os liga à vizinha África do Sul. Uma das intenções dos governos moçambicano e sul-africano é proteger esta antiga rota e fazer dela um dos focos de atracção para as zonas de conservação transfronteiriças. O não haver quase nada na região é, sem dúvida, uma condição negativa. Mas pode ser convertida no seu oposto. A baixíssima densidade populacional, a ocorrência de florestas dunares intactas, de vegetação única e as potencialidades para a fauna são razoes que fazem acreditar no futuro do lugar. Há alguns anos atrás, um cientista sul-africano de renome internacionaI, Braham van Wyk, visitou e estudou esta mesma região. Os sul-africanos chamam a zona de Maputaland. Fascinado pela riqueza biológica, Van Wyk propôs que Maputaland fosse proclamada como Zona de Endemismo de interesse mundial. O nome da região passou a figurar em tudo o que é literatura de biodiversidade.
Os habitantes de Matutuíne não conhecem a palavra. Mas sabem bem o que é biodiversidade. Não se trata de um conceito. Eles vivem à custa da biodiversidade. Sobrevivem nesse recanto, tão próximo e tão distante. Falta criar essa ponte que quebre o histórico isolamento. Mas que seja uma ponte que leve e traga na mesma proporção. E não mais uma dessas pontes feitas para tirar tudo e não dar nada.
(Abril de 2004)
Mia Couto

Sem comentários:

Enviar um comentário