Biodiversidade? O tradutor hesitou. O esgar no rosto traduzia o esforço para encontrar no léxico do xironga um equivalente para biodiversidade.
Traduziu por elefantes. Depois, emendou: os bichos. Sentados no chão, os camponeses
não disfarçaram a desconfiança. Fossem elefantes, fosse bicharada o assunto merecia
um pé atrás. Então, e as pessoas? O tradutor encontrou ali uma saída e
disparou: sim, as pessoas, os bichos, a terra, tudo isso em conjunto. E
reforçou as palavras com um gesto fechado e redondo.
Era
a mensagem que trazíamos para a gente de Machangulo. O lugar fica próximo de Maputo, a não mais de uns cinquenta quilómetros. Mas a vida ali decorre não
apenas longe da capital. Decorre num outro mundo. Esse outro mundo, ali mesmo
na ilharga da grande cidade de Maputo, é uma
das regiões menos desenvolvidas do país. Estradas há poucas, escolas
pouquíssimas, postos de saúde quase nenhum. Na ausência completa de
transportes, os camponeses percorrem a pé distâncias incalculáveis. O centro de
gravidade das suas vidas não é realmente a capital. Nem é dentro de Moçambique.
Eles olham para o Sul, para a Africa do Sul, para o Kwazulu-Natal. É lá que vendem produtos, é lá que vão buscar trabalho. É
de lá que vieram os seus antepassados aquando das migrações nguni. Muitos falam zulu, poucos falam português.
A
reunião em que participei fazia parte de um trabalho longo para elaborar o
plano de gestão do distrito de Matutuíne, a região mais meridional da costa
de Moçambique. Lá no extremo Sul, brilha as Pontas do Ouro, de Mamoli e de Malongane. Depois, mais nada brilha. Ou brilha
apenas numa outra, mais oculta, dimensão. E lá estávamos nós, biólogos e outros, tentando trazer para o papel a infinita complexidade daquele
quotidiano. O nosso desafio maior era encontrar na biodiversidade razões para começar programas geradores de riqueza,
pontes com a modernidade. De modo a que a tal biodiversidade transitasse de conceito para semente. E, no final, germinasse isso que se chama de
desenvolvimento.
Os
especialistas, vindos de Maputo, olhavam para o calendário, com a angústia do
tempo. Os experts,
como gostam de ser chamados, estão sempre cheios de pressa. A mim,
deleitavam-me os intervalos do trabalho. Sentado na margem de uma das muitas
lagoas, numa dessas longas tardes, não dei conta do entardecer. Eu estava como
que embriagado pela extraordinária beleza do local. As dunas cobertas de um
verde intenso simulavam um oceano imóvel. O fundo dos vales almofadava a dormência
de lagoas de cores diferentes. Van Gogh estaria aqui mais sentado do que eu. E produzindo mais. E
aqui, em Matutuíne, que mora uma das regiões mais ricas de Moçambique. Rica em
diversidade de espécies e afortunada em paisagens que capricham com o mar em
espelho.
Nessa
tarde, deixo-me amolecer na preguiçosa sensação de princípio do mundo, como se
por detrás daquelas dunas ainda
estivessem chegando os deuses
para criar o Universo. Os
deuses não teriam nem a pressa nem o ar
solene dos consultores da capital? O meu lugar não estaria, afinal, tão longe
do divino. Para a população local, aquela lagoa era sagrada. Ali era
interdito pescar. Nas suas margens, todos os anos, no início de Fevereiro, se bebia
ucanhu, a bebida fermentada que celebra as colheitas.
O
som metálico de panelas chocalhando me despertou. O que se passava? Mulheres e
homens pareciam apostados em desfazer a tranquilidade. E estavam. Produziam
barulho para afugentar os hipopótamos. Ainda os
vi, pachorrentos, parados no capinzal a avaliar os riscos de se aventurarem nas
machambas dos
camponeses. Um dos homens aproximou-se de mim. Trazia na mão folhas secas de
palmeiras com as quais ia ateando pequenas fogueiras. Panelas e fogo se reforçavam
no serviço de afastar os paquidermes.
O homem aproveitou o momento e atirou-me:
– Está a ver? Ainda vocês chegam aqui
para proteger bichos…
Não
respondi. Seria de pouca valia a minha argumentação. De pouco valeria dizer que
animais e pessoas podem combinar modos de conviver e produzir vantagens
recíprocas. O camponês escutaria com a habitual educação e a paciência de
milénios. Mas, interiormente, ele permaneceria ancorado nas suas razões. O que
precisamos são exemplos, modelos práticos que comprovem como as ideias
funcionam. E esses modelos custam tempo. Os consultores não possuem tempo.
Na
manhã seguinte, despertei com a luz do Sol. Do ponto alto em que montara a
minha tenda, podia ver-se água pelos dois lados. Do lado interior, as águas paradas
da baía de Maputo,
com a ilha da Inhaca e o
amplo estuário do rio Maputo.
Do lado exterior, o infinito do Índico, com seus azuis mais
profundos. Dirigi-me ao edifício onde prosseguia o nosso encontro, quando
alguém me avisa que a biodiversidade passou por ali de madrugada. «A biodiversidade?», perguntei.
Responderam risos. Tinham sido os elefantes, essa enorme manada
que sobreviveu à guerra e à caça furtiva. Estão ali desde sempre, renovando o
chamado Corredor do Fúti que os liga à
vizinha África do Sul.
Uma das intenções dos governos moçambicano e sul-africano é proteger esta
antiga rota e fazer dela um dos focos de atracção para as zonas de conservação
transfronteiriças. O não haver quase nada na região é, sem dúvida, uma condição
negativa. Mas pode ser convertida no seu oposto. A baixíssima densidade
populacional, a ocorrência de florestas dunares intactas, de vegetação única e
as potencialidades para a fauna
são razoes que fazem acreditar no futuro do lugar. Há alguns anos atrás, um
cientista sul-africano de renome internacionaI, Braham van Wyk,
visitou e estudou esta mesma região. Os sul-africanos chamam a zona de Maputaland. Fascinado pela
riqueza biológica, Van Wyk
propôs que Maputaland fosse proclamada como Zona de Endemismo
de interesse mundial. O nome da região passou a figurar em tudo o que é
literatura de biodiversidade.
Os
habitantes de Matutuíne
não conhecem a palavra. Mas sabem bem o que é biodiversidade. Não se trata de
um conceito. Eles vivem à custa da biodiversidade. Sobrevivem nesse recanto,
tão próximo e tão distante. Falta criar essa ponte que quebre o histórico
isolamento. Mas que seja uma ponte que leve e traga na mesma proporção. E não
mais uma dessas pontes feitas para tirar tudo e não dar nada.
(Abril de 2004)
Mia Couto
Sem comentários:
Enviar um comentário