sábado, 20 de julho de 2013

Dias contados

Saí do Seminário no fim do 6.º ano, em meados de 1961, e passei a frequentar o mar de Esposende, em cuja praia encontrei uma lina menina e a sua mãe. Fiquei amigo delas e passei a visitá-las na casa onde moravam, a meio da Avenida Rocha Gonçalves, onde eu também vivia, no n.º 4. Tornamo-nos especiais amigos, até que de lá saíram e nunca mais as vi. Aquelas amigas eram a Mónica e a mãe Agustina Bessa-Luís.
Casualmente li no último número do JL os Dias contados da Mónica.
Já não se deve lembrar de mim, mas não resisto sem guardar e transcrever aquele autobiógrafo, com um velho abraço.

AUTOBIOGRAFIA

Mónica Baldaque

Dias contados

Mónica Baldaque, 67 anos, é escritora, pintora e ilustradora. Com o Curso Superior de Pintura, foi conservadora de museus (e diretora do Soares dos Reis, do Porto), tem feito exposições individuais e participado em coletivas, é autora de livros infanto-juvenis e de ficção, tendo o último, de contos, Vinte anos na província (Sextante), acabado de sair

Nasci na província, à meia - noite de um domingo de 12 para 13 de maio. Descia a procissão das velas pela quinta dos meus avós, e a lua em quarto-crescente brilhava no céu azul-limpo.
Nasci num dos quartos do mirante, sobre o magnífico vale da Régua. Magnífico, quando tudo eram quintas e caminhos estreitos entre muros e oliveiras; e as vidas eram secretas; e o canto compassado dos cavadores me inquietava, como se preparassem um ritual de morte.
Não era uma vila, nem uma aldeia, mas um lugar: lugar de Godim, antiquíssimo, referido em pergaminhos do tempo de Egas Moniz. Aquela casa fora dos meus bisavós, e passara para minha avó e a sua irmã, espanholas de Zamora.
Quando eu nasci, alguém me tirou o coração e o escondeu na casa. Por isso ele nunca deixou de bater lá, e contínua, para sempre.
A família do Douro era uma gente estranha. Liam muito, escreviam bem, tinham uma tendência para o teatro, e um temperamento feroz; para eles, nada era verdadeiramente importante, nem viver nem morrer, nem ser isto ou aquilo, e geriam com desprendimento as fortunas que vinham e iam.
Eles representavam o mundo fantástico para uma criança. Eu era feliz, porque não me exigiam mais do que aquilo que era natural eu dar, o que significava que vivia ali num estado de liberdade e de confiança nos adultos.
Depois de um mês de férias no Douro eu chegava a casa dos meus pais, no Porto, com os deveres por fazer, má pronúncia, feridas no corpo, porque me alimentava de batatas fritas e ovos estrelados. Sempre detestei que chamassem por mim para ir para a mesa!
Nas tardes de muito calor, eu lia na sala às escuras as histórias da Elena Fortún, em espanhol: os dias de Célia e as suas três primitas que viviam em Madrid e passavam férias em Santander. Representavam já uma época um pouco antiquada, mas não deixava de me tocar pelas ligações familiares que se esboçavam, divertidas, complexas e agitadas.
Com os meus pais, as regras mudavam: era a escola, o estudo, as obrigações de cumprir, de me formar no conhecimento da vida e das pessoas. Exigiam que eu estivesse atenta e soubesse exprimir -me.
Chorava, quando vinha do Douro, mas enfrentava com coragem e determinação este outro desafio a vencer.
Mas o tempo da primeira inncia, passei -o em Coimbra. Meu pai concluía Direito, minha e escrevia e tratava de mim e da casa. Vivíamos numa pequena casa dentro de um jardim, próxima da dos meus avós paternos. Meu avô era militar, e todos os dias o impedido lhe trazia o cavalo a casa, para ele seguir para o quartel. Levava-me a passear a pé até à Quinta das Lágrimas ou ao Portugal dos Pequeninos, o que significava andar 5 quilómetros por dia! Muito pequena, já olhava as plantas com imensa delicadeza e ternura. Chegava a casa sempre com um raminho de alecrim.
Mudámos entretanto para o Porto. Gostei de fazer a primária na escola pública de Cedofeita. Lembro-me de todas as amigas que lá tive, da rua que percorria, das lojas, do recreio da escola com duas enormes tílias que o ensombravam. E de escrever no caderno -1952.
Depois, o Liceu Carolina Michaelis, a que não consegui adaptar-me. Não gostava do edifício, nem dos corredores, nem dos recreios. Tudo aquilo era inóspito e hospitalar. O meu rendimento era mau. Mudaram-me para o Colégio da Paz, das freiras Doroteias.
Sempre me enfastiaram as aulas. Bom, era o tempo de férias no Douro! Lá, se moldou a minha alma provinciana e resistente.
Nunca tive medo de nada. Nem do escuro, nem dos mortos, nem dos fantasmas, nem dos ladrões. Ficava sempre do lado dos personagens mais temíveis, não para os catequizar e trazer para o lado da luz e do bem, mas pelo prazer de os desmontar.
A gente do Paço, de Vila Meã, da parte de meu avô materno, era uma gente valente e aventureira. E a aventura não implica forçosamente partir para o Brasil, ou outros lugares distantes. Pode ser-se aventureiro no espaço limitado do vale onde se nasceu, viveu e morreu, sem de lá ter saído.
No fim do verão, fazia a viagem de comboio com a minha avó, da Régua até Vila Meã. Ia receber rendas, acertar contas, ouvir queixas, despedir uns, admitir outros.
A minha tia Amélia (a Sibila), recebia-me à porta da cozinha, sem um sorriso nem um beijo. Punha-me um avental comprido, e um grosso cordão de ouro ao pescoço. ''Aqui todos trabalham" - dizia-me.
Eu aceitava aquela extravagância e procurava não me sair mal. Trocava o babeiro de fustão e bordado inglês branco que usava no Douro pelo avental de chita... Aprendi a fiar linho e a dar de comer aos porcos, e ouvia em silêncio as conversas cheias de conflitos, dos adultos, à luz da candeia de azeite.
Só muito mais tarde percebi o sentido do avental e do cordão de ouro. Era como quem me dizia: - tu és aqui rainha, podes usar o ouro, mas trabalhas como os outros todos.
Pouco convivi com essas tias, irmãs de meu avô materno, mas esse ensinamento ficou-me para toda a vida. E a suspeita, ainda, de que elas consideravam o amor coisa de velhos e ociosos!
Com meu avô, já convivi mais. Não confiava nada nele. Vivia ao contrário de todos nós, e transtornava a vida da casa. Almoçava às três da tarde, saía às cinco, e só voltava de madrugada. O avô jogava, e fazia negócios. No jogo ganhava, nos negócios perdia. Lia romances de capa-e-espada que lhe mandavam em caixotes, da livraria.
Já muito doente, pediu que lhe pendurassem no quarto, em frente à cama, o relógio da sala de jantar. Queria saber a que horas ia morrer, o que nos pareceu bem.
1962 - o grande ano de todas as mudanças. Fomos viver para Esposende. Uma casa isolada num pinhal, numa terra de pescadores, deserta no inverno. A mãe fazia uma vida retirada, e eu não podia ser mais feliz naquela terra sem perigos, onde passeava sozinha com o cão, à beira-mar, na praia deserta.
Minha mãe dava-me para ler, Dickens, e mandava-me ir ver os filmes do Bergman. Meu pai desenhava, e ensinava-me a desenhar.
Aí, comecei a escrever. A escrever cartas intermináveis, que eram como diários de bordo.
Ainda estive um ano interna no colégio das Doroteias, na Póvoa, onde andara minha mãe. Mas tendo seguido a área de Letras, que no colégio não havia, fiquei dois anos em casa a estudar com um professor particular que lá ia todos os dias dar-me aulas. Um privilégio fantástico! Era dona do meu tempo.
Entrei em História, na Faculdade de Letras do Porto. Fiz uma única cadeira - Paleografia. A mais interessante, porque me obrigava a decifrar, e não a decorar. Mudei para Belas-Artes. Frequentei dois anos a Escola do Porto, e, zangada, pedi a transferência para Lisboa. Fui viver para casa de uma senhora judia alemã, mesmo nas traseiras da sinagoga. Ela fazia-me seguir a sua alimentação Kasher, e contava-me episódios terríveis da guerra, com um sentimento de uma dor apagada e adormecida.
Não gostei de Lisboa. Demasiada luz, demasiada gente, demasiadas ruas perpendiculares, demasiado rio, demasiado pouco do que eu realmente precisava para seguir o meu destino. Precisava do nevoeiro a entrar-me pela casa dentro, dos negros e azuis da paisagem, da pronúncia de corte castelhana, da linha do Douro, e de tudo o que eu já tinha aprendido e não podia esquecer. É importante que cada um conheça bem os limites do seu mundo, para que ele possa crescer como deve, de dentro para fora, e nunca de fora para dentro, inchando-nos.
Os meus pais compraram a casa do lgota, sobre o rio, e aí se fixaram. Foi urna casa de ingleses, que mantém a mesma traça e a mesma atmosfera. Já pouco lá vivi, porque casei entretanto. Mas sinto ser essa, hoje, a casa de família.
Semeou sécias no jardim, e morreu lá, minha amaterna; e as coisas todas foram tomando conta do seu lugar.
A casa do Douro foi vendida, e eu dormi lá na última noite com as minhas filhas. Demos uma volta aos quintais antes de entregarmos a chave, e tive uma pena imensa das galinhas que ficavam no galinheiro.
Ah! Fiz uma carreira nos museus, de que já me esqueci. Não por mágoas, mas porque isso foi a minha vida paralela que ficou para trás, esbatida. Foi uma tarefa que cumpri, mas não um destino. Esse, é só meu, não partilhável, e será o que eu deixo em testamento aos meus três filhos. JL

JL – Número 1116 * De 10 a 23 de julho de 2013 * pág. 36

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